Connecting the Dots com Sylvia Kokunda
Uma conversa com a fundadora e directora executiva da Action for Batwa Empowerment Group, uma organização indígena dedicada ao empoderamento das comunidades Batwa no Uganda.
As comunidades Batwa no Uganda, Ruanda e RDC são exemplos claros dos efeitos devastadores da conservação-fortaleza, o modelo colonial de preservação da natureza assente na separação vincada da natureza e dos seres humanos. Muitas vezes, a designação de áreas protegidas leva à deslocação forçada de pessoas até aí responsáveis pela gestão desse ecossistema – comunidades que prosperavam nesses mesmos lugares, e que deles dependiam para o seu sustento espiritual e físico.
Na floresta do Bwindi, em 1991, projetos de conservação da vida selvagem empurraram as comunidades Batwa para as margens da sociedade ugandesa. Incapazes de navegar este novo meio social, os Batwa sofreram um aprofundamento da sua marginalização. Um capítulo breve, abrupto e violento, com consequências devastadoras, na história de um povo que há milénios vivia e prosperava na floresta.
As escassas estatísticas existentes sobre as comunidades Batwa no Uganda – nos domínios da educação, da saúde ou dos recursos financeiros – apontam para um nível assombroso de marginalização social e económica. De tal forma, que facilmente se tendem a esquecer dois aspectos fundamentais do que seria uma narrativa verdadeira sobre os Batwa: Em primeiro lugar, que este povo não só sobreviveu, como prosperou na floresta, através de um ancestral e profundo sistema de conhecimento dos recursos disponíveis na floresta, usados para construir abrigos, para a alimentação e a medicina. Em segundo lugar, que a enorme marginalização destas comunidades foi sempre acompanhada pela extraordinária resiliência e pelo trabalho incansável dos indivíduos e organizações Batwa que lutam para melhorar as suas vidas, reclamar os direitos do seu povo e proteger os seus conhecimentos, cultura e identidade.
Nos últimos anos, a Azimuth estabeleceu parcerias com organizações Batwa, e essas experiências demonstraram a enorme importância de promover um reconhecimento e presença das vozes destas comunidades a nível global. Ouvir os testemunhos de indivíduos Batwa leva a uma reflexão profunda e essencial sobre a história do colonialismo na conservação, sobre as estruturas e processos de colonização que ainda estão em curso, e ainda sobre os efeitos devastadores que tiveram e continuam a ter. Mas, acima de tudo, leva-nos a histórias que falam do futuro, de como os Batwa estão ultrapassar estes desafios e de como sonham prosperar apesar das enormes adversidades que enfrentam.
Hoje, temos o privilégio de conversar com Sylvia Kokunda. Sylvia, líder Batwa, é a fundadora e directora executiva da Action for Batwa Empowerment Group (ABEG), uma organização ugandesa sem fins lucrativos que trabalha para fortalecer as comunidades Batwa. Depois de concluir uma licenciatura em Administração e Gestão Pública e um mestrado em Liderança e Gestão Organizacional, Sylvia decidiu dedicar a sua vida a representar a sua comunidade em fóruns nacionais, regionais e internacionais de direitos humanos, onde se tem manifestado corajosamente contra as injustiças inaceitáveis que os Batwa continuam a sofrer sob a tutela do governo do Uganda. Os projectos da ABEG procuram capacitar as comunidades Batwa nas áreas da luta pela defesa de diretos, da educação, do desenvolvimento de competências, da prestação de cuidados de saúde, da agricultura comercial, do turismo e da investigação, com o objectivo de transformar as suas vidas e cultura de forma holística e conducente a um futuro próspero. A Action for Batwa Empowerment Group também coopera com várias entidades nacionais e internacionais, tendo em vista o desenvolvimento de uma abordagem abrangente e de soluções capazes de responder aos desafios que os Batwa enfrentam.
Veja a versão em vídeo, em baixo (legendas em português disponíveis), ou faça scroll para ouvir a versão em podcast, ou para ler a versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Crédito: Action for Batwa Empowerment
MARIANA MARQUES (PRESIDENTE, AZIMUTH WORLD FOUNDATION)
Como ponto de partida para a nossa conversa de hoje, pedia-lhe que descrevesse nos seus próprios termos a comunidade Batwa de onde provém, falando-nos da sua cultura e história, bem como da marginalização a que a comunidade foi sujeita desde a expulsão da floresta. Sabemos que é uma pergunta muitíssimo vasta, mas gostávamos que partilhasse connosco uma visão geral, e que nos dissesse de que forma essa experiência a levou a fundar a Action for Batwa Empowerment Group.
SYLVIA KOKUNDA
Sou da comunidade Batwa, que é uma das comunidades Indígenas do Uganda. Os Batwa são os habitantes originais da floresta. A nossa cultura, a nossa sobrevivência, a nossa sustentabilidade, toda a nossa vida dependia da floresta. Em termos de alimentação, abrigo, medicamentos e também de culto espiritual, tudo isso dependia da floresta.
E em 1991, o Governo do Uganda declarou a floresta como uma área de conservação, com o objectivo de proteger os gorilas de montanha, uma espécie considerada em perigo de extinção. Os gorilas de montanha, que permaneceram na floresta, foram protegidos em detrimento dos seres humanos. E os Batwa foram deslocados à força, sem consentimento livre, prévio e informado.
Nunca nos foi apresentado um modo alternativo de vida, e também nos tornámos ocupantes em terras alheias. Porque quando fomos expulsos, tivemos de ocupar as margens da floresta, encontrando biscates, ou trabalhando nas fazendas de outras pessoas para ganhar a vida e também para sobreviver. Começámos a sofrer, e continuamos a sofrer, uma marginalização económica, sociopolítica e ambiental.
Isso também levou à criação da ABEG, da Action for Batwa Empowerment Group, que procura empoderar o povo Batwa, amplificar as suas vozes e capacitar os Batwa para reclamarem os seus direitos. Porque não podíamos simplesmente manter este estado de coisas, sob o olhar do governo que nos expulsou da floresta e que nunca nos compensou, impedindo-nos de ter outro lugar onde possamos viver.
Agora, através da ABEG, fortalecemos os Batwa, através da defesa dos seus direitos, da capacitação económica, da investigação e de muitas outras iniciativas. É isso que faz a ABEG, enquanto uma das organizações fundadas e dirigidas por indivíduos Batwa.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
Como é que a sociedade ugandesa encara a história e a situação atual dos Batwa e em que medida é que as vozes dos Batwa moldam o discurso nacional sobre estas questões?
SYLVIA KOKUNDA
A sociedade ugandesa vê os Batwa como os mais pobres entre os pobres, como inferiores e ignorantes. Porque não ter terra, não ter acesso à educação, não ter acesso a serviços de saúde, entre outras coisas, torna-nos mais vulneráveis, o que tem mantido e aprofundado a nossa marginalização.
Mas é preciso empenho e coragem para começar e construir algo. Para isso foi criada a Action for Batwa Empowerment Group, para poder amplificar as vozes dos Batwa e também para garantir que podemos estabelecer parcerias e fazer lobby junto do governo, para chegar até mesmo à sociedade, garantindo que a voz da comunidade Batwa é ouvida.
No entanto, temos enfrentado desafios e oposição por parte de organizações que prestam os mesmos serviços, e que afirmam que estão a ajudar os Batwa. No entanto, a verdade é que estas organizações se estão a aproveitar do povo Batwa.
Enquanto organização fundada e liderada por indivíduos Batwa, a ABEG tem uma posição única, que nos impede de tirar partido das nossas comunidades. Quando se é Batwa, ou quando se é uma pessoa em sofrimento, quando se sente a dor na pele, compreendemos o que é esse sofrimento, ou quão profunda é essa dor.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
A conservação-fortaleza contribuiu para o apagamento da história dos Batwa como um povo da floresta próspero. Podia falar-nos sobre a riqueza de conhecimentos e engenho que caracterizavam estas comunidades quando viviam na floresta?
SYLVIA KOKUNDA
Nós, os Batwa, fomos os primeiros a possuir conhecimentos sobre conservação. Por exemplo, no que se refere às colheitas. Como somos caçadores e recolectores, não desenraízamos todas as plantas, nem derrubamos todas as árvores. Colhemos apenas junto às raízes, quando removemos os alimentos. Depois, quando verficamos que os alimentos estão a escassear no sítio onde estamos, mudamos para outro sítio, para permitir que alimentos voltem a crescer aí.
Também possuímos conhecimentos sobre plantas medicinais, somos os nossos próprios médicos, enfermeiros e parteiras. Sabíamos que cada planta tinha o seu próprio significado, sabíamos que tipos eram perigosos ou prejudiciais para o nosso corpo, e quais as plantas medicinais úteis para as nossas vidas.
Tínhamos uma cultura de cestaria, e na fabricação dos nossos cestos tingíamos a ráfia com diferentes folhas e ervas, oriundas de diferentes árvores e plantas, para conseguirmos embelezar os nossos cestos com várias cores, cestos esses que usávamos nas nossas habitações e também para armazenar alimentos, quando estávamos na floresta.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
Com a Minority Rights Group International e outros parceiros locais, implementou o projeto ‘From Disparity to Dignity: Realising Indigenous and Minority Rights in Development.’ Este projeto estudou o acesso à educação e aos serviços de saúde no Uganda, por parte das comunidades Batwa e das pessoas com deficiência, tendo sido utilizado como base para uma sessão de esclarecimento nacional sobre este tema. Pode falar-nos de algumas das principais conclusões deste estudo? Quais os impactos do estudo no domínio dos cuidados de saúde, ao nível das práticas, das políticas ou da sensibilização?
SYLVIA KOKUNDA
Realizámos com a MRG este inquérito sobre o acesso dos Batwa à educação e à saúde. E uma das nossas principais conclusões foi que os Batwa não têm acesso à educação e à saúde porque têm de percorrer distâncias longas.
Para além disso, ao nível da educação, os Batwa não têm comida para comer na escola. Também não têm acesso a materiais educativos, como livros e uniformes. Não se pode ir à escola quando não se tem um uniforme ou quando só se tem roupa suja para vestir. E depois diz-se que a educação é gratuita. Nesta educação supostamente universal, há coisas que se pagam, e que não estão ao alcance dos Batwa. Os estudantes Batwa são segregados pelos outros estudantes. Não se querem sentar ao lado dos estudantes Batwa, por causa da sujidade, porque cheiram mal. E isto faz com que as crianças odeiem a escola e não voltem.
Além disso, a situação é a mesma no acesso à saúde. Há longas distâncias que têm de percorrer para aceder a esses serviços. E há também desigualdade na prestação de serviços. Continua a haver muita marginalização e os Batwa são atendidos em último lugar, depois dos outros membros da comunidade.
Perante os resultados deste estudo, tentámos envolver o governo, entidades relevantes, até mesmo os serviços de saúde. Também participámos em programas de rádio, para nos certificarmos de que havia uma maior sensibilização para o facto de os Batwa serem cidadãos do país, como quaisquer outros. Algumas coisas mudaram, pelo menos, mas não muitas. Há pelo menos um dos hospitais, o Bwindi Community Hospital em Kanungu, onde temos uma equipa grande a prestar apoio às povoações Batwa.
E nalgumas das escolas frequentadas por crianças Batwa a marginalização tem diminuído. Já se começam a enturmar com os colegas e há menos casos de assédio. No entanto, isto não reflecte as nossas esperanças. Nós esperamos conseguir muito mais e melhor do que isto, queremos que os Batwa possam ter acesso à educação, que possam ter bolsas do governo, as bolsas que não têm tido devido à marginalização.
Também queremos conseguir seguros de saúde para o povo Batwa, porque era na floresta que obtínhamos as nossas plantas medicinais, e já não temos acesso nem à floresta, nem às plantas medicinais. E não temos dinheiro para pagar idas aos hospitais. É por isso que pedimos ao governo que providencie seguros de saúde para a população Batwa.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
A Sylvia também faz parte da Land Body Ecologies, uma rede transdisciplinar e grupo de investigação global que explora as ligações profundas entre a saúde mental e a saúde dos ecossistemas. De que forma é que este trabalho com investigadores de outras comunidades Indígenas, que enfrentam desafios semelhantes, fortaleceu o seu trabalho local?
SYLVIA KOKUNDA
Penso que integrar a Land Body Ecologies me ajudou a estabelecer redes. Conseguimos perceber que globalmente estas questões têm muita visibilidade. E isso também nos tem dado oportunidades de expor o nosso trabalho, por exemplo através da minha presença na COP28, a segunda COP em que participo. Isto permitiu-me partilhar experiências, e também criou oportunidades de aprendizagem.
Além disso, a Land Body Ecologies ajudou-nos a produzir um dos primeiros artigos de investigação conduzidos por indivíduos Batwa. Até agora, muitos investigadores de fora vinham fazer trabalho sobre os Batwa. Mas nós não fazíamos parte da investigação. E agora os Batwa participaram no trabalho de investigação, puderam produzir o seu primeiro artigo de investigação, e essa é uma experiência memorável para os Batwa, e memorável para a ABEG.
Créditos: Global Climate and Health Alliance
MARIANA MARQUES
Falando um pouco da Action for Batwa Empowerment Group, quais foram alguns dos projectos mais relevantes que a organização implementou, e quais os seus resultados?
SYLVIA KOKUNDA
A nossa organização, a ABEG, procura principalmente defender os direitos dos Batwa no acesso à educação, promover a sua capacitação económica, e temos tentado erguer a nossa voz para defender os direitos do povo Batwa. Além disso, temos o nosso trabalho de investigação, que se está a tornar numa importante ferramenta de defesa dos direitos das comunidades Batwa.Também temos realizado muitas reuniões com entidades relevantes, com o governo e outras partes interessadas, para que os Batwa sejam cidadãos valorizados no país.
Também trabalhamos na área do treino de competências e do empreendedorismo, onde treinamos jovens mulheres Batwa em competências que as podem ajudar a ter rendimentos, e nesse sentido também lhes fornecemos capital de arranque. Porque nas comunidades onde vivemos, é muito frequente que homens não-Batwa se aproveitem das jovens Batwa, que acabam por engravidar. E os pais dessas crianças não assumem a responsabilidade pelos seus filhos. E constatamos que há muitas jovens que são mães solteiras e que cuidam dos seus filhos sozinhas. É por isso que as treinámos, lhes demos competências e capital de arranque, para poderem começar as suas pequenas empresas, e para que consigam cuidar das suas famílias e dos seus filhos.
E também tentámos conceder empréstimos aos Batwa. Porque os Batwa não têm capacidade para ir aos bancos e obter empréstimos para criar empresas. Tentámos assegurar-lhes alguns empréstimos, para que possam começar os seus próprios projectos e criar as suas empresas, de modo a conseguirem cuidar das suas famílias.
E a verdade é que há entre os Batwa níveis elevados de violência doméstica. Este é outro dos projectos que desenvolvemos, que tem como objectivo reduzir a violência doméstica.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
E tendo em conta os desafios, há alguma possibilidade de os Batwa regressarem ao seu estilo de vida tradicional na floresta? Que visão tem para o futuro das comunidades Batwa no Uganda?
SYLVIA KOKUNDA
Eu vejo o silêncio do governo quanto à possibilidade de nos devolver a floresta. Mas a minha visão, o meu objetivo, é garantir que nós, os Batwa, possamos voltar a ter acesso à floresta, e que sejamos capazes de voltar a praticar a nossa cultura.
Se a nossa cultura não é praticada, vamos perder a nossa identidade cultural no futuro. Sobretudo a geração mais jovem. Eles já não praticam a nossa cultura, e nós não a podemos praticar quando não estamos na floresta, onde a maior parte das nossas coisas estavam, onde está todo o nosso conhecimento.
Somos os primeiros conservacionistas da floresta e não há conservação sem os Povos Indígenas, sem os Batwa. Somos guardiões da floresta, sabemos como conservá-la, e sabemos conservá-la de modo a manter a nossa cultura como povo.
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Connecting the Dots com Sylvia Kokunda
Uma conversa com a fundadora e directora executiva da Action for Batwa Empowerment Group, uma organização indígena dedicada ao empoderamento das comunidades Batwa no Uganda.
As comunidades Batwa no Uganda, Ruanda e RDC são exemplos claros dos efeitos devastadores da conservação-fortaleza, o modelo colonial de preservação da natureza assente na separação vincada da natureza e dos seres humanos. Muitas vezes, a designação de áreas protegidas leva à deslocação forçada de pessoas até aí responsáveis pela gestão desse ecossistema – comunidades que prosperavam nesses mesmos lugares, e que deles dependiam para o seu sustento espiritual e físico.
Na floresta do Bwindi, em 1991, projetos de conservação da vida selvagem empurraram as comunidades Batwa para as margens da sociedade ugandesa. Incapazes de navegar este novo meio social, os Batwa sofreram um aprofundamento da sua marginalização. Um capítulo breve, abrupto e violento, com consequências devastadoras, na história de um povo que há milénios vivia e prosperava na floresta.
As escassas estatísticas existentes sobre as comunidades Batwa no Uganda – nos domínios da educação, da saúde ou dos recursos financeiros – apontam para um nível assombroso de marginalização social e económica. De tal forma, que facilmente se tendem a esquecer dois aspectos fundamentais do que seria uma narrativa verdadeira sobre os Batwa: Em primeiro lugar, que este povo não só sobreviveu, como prosperou na floresta, através de um ancestral e profundo sistema de conhecimento dos recursos disponíveis na floresta, usados para construir abrigos, para a alimentação e a medicina. Em segundo lugar, que a enorme marginalização destas comunidades foi sempre acompanhada pela extraordinária resiliência e pelo trabalho incansável dos indivíduos e organizações Batwa que lutam para melhorar as suas vidas, reclamar os direitos do seu povo e proteger os seus conhecimentos, cultura e identidade.
Nos últimos anos, a Azimuth estabeleceu parcerias com organizações Batwa, e essas experiências demonstraram a enorme importância de promover um reconhecimento e presença das vozes destas comunidades a nível global. Ouvir os testemunhos de indivíduos Batwa leva a uma reflexão profunda e essencial sobre a história do colonialismo na conservação, sobre as estruturas e processos de colonização que ainda estão em curso, e ainda sobre os efeitos devastadores que tiveram e continuam a ter. Mas, acima de tudo, leva-nos a histórias que falam do futuro, de como os Batwa estão ultrapassar estes desafios e de como sonham prosperar apesar das enormes adversidades que enfrentam.
Hoje, temos o privilégio de conversar com Sylvia Kokunda. Sylvia, líder Batwa, é a fundadora e directora executiva da Action for Batwa Empowerment Group (ABEG), uma organização ugandesa sem fins lucrativos que trabalha para fortalecer as comunidades Batwa. Depois de concluir uma licenciatura em Administração e Gestão Pública e um mestrado em Liderança e Gestão Organizacional, Sylvia decidiu dedicar a sua vida a representar a sua comunidade em fóruns nacionais, regionais e internacionais de direitos humanos, onde se tem manifestado corajosamente contra as injustiças inaceitáveis que os Batwa continuam a sofrer sob a tutela do governo do Uganda. Os projectos da ABEG procuram capacitar as comunidades Batwa nas áreas da luta pela defesa de diretos, da educação, do desenvolvimento de competências, da prestação de cuidados de saúde, da agricultura comercial, do turismo e da investigação, com o objectivo de transformar as suas vidas e cultura de forma holística e conducente a um futuro próspero. A Action for Batwa Empowerment Group também coopera com várias entidades nacionais e internacionais, tendo em vista o desenvolvimento de uma abordagem abrangente e de soluções capazes de responder aos desafios que os Batwa enfrentam.
Veja a versão em vídeo, em baixo (legendas em português disponíveis), ou faça scroll para ouvir a versão em podcast, ou para ler a versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
Não vive sem os seus podcasts? Para não perder um episódio, subscreva o canal da Azimuth na Apple Podcasts ou no Spotify, aqui.
VERSÃO ESCRITA
Crédito: Action for Batwa Empowerment
MARIANA MARQUES (PRESIDENTE, AZIMUTH WORLD FOUNDATION)
Como ponto de partida para a nossa conversa de hoje, pedia-lhe que descrevesse nos seus próprios termos a comunidade Batwa de onde provém, falando-nos da sua cultura e história, bem como da marginalização a que a comunidade foi sujeita desde a expulsão da floresta. Sabemos que é uma pergunta muitíssimo vasta, mas gostávamos que partilhasse connosco uma visão geral, e que nos dissesse de que forma essa experiência a levou a fundar a Action for Batwa Empowerment Group.
SYLVIA KOKUNDA
Sou da comunidade Batwa, que é uma das comunidades Indígenas do Uganda. Os Batwa são os habitantes originais da floresta. A nossa cultura, a nossa sobrevivência, a nossa sustentabilidade, toda a nossa vida dependia da floresta. Em termos de alimentação, abrigo, medicamentos e também de culto espiritual, tudo isso dependia da floresta.
E em 1991, o Governo do Uganda declarou a floresta como uma área de conservação, com o objectivo de proteger os gorilas de montanha, uma espécie considerada em perigo de extinção. Os gorilas de montanha, que permaneceram na floresta, foram protegidos em detrimento dos seres humanos. E os Batwa foram deslocados à força, sem consentimento livre, prévio e informado.
Nunca nos foi apresentado um modo alternativo de vida, e também nos tornámos ocupantes em terras alheias. Porque quando fomos expulsos, tivemos de ocupar as margens da floresta, encontrando biscates, ou trabalhando nas fazendas de outras pessoas para ganhar a vida e também para sobreviver. Começámos a sofrer, e continuamos a sofrer, uma marginalização económica, sociopolítica e ambiental.
Isso também levou à criação da ABEG, da Action for Batwa Empowerment Group, que procura empoderar o povo Batwa, amplificar as suas vozes e capacitar os Batwa para reclamarem os seus direitos. Porque não podíamos simplesmente manter este estado de coisas, sob o olhar do governo que nos expulsou da floresta e que nunca nos compensou, impedindo-nos de ter outro lugar onde possamos viver.
Agora, através da ABEG, fortalecemos os Batwa, através da defesa dos seus direitos, da capacitação económica, da investigação e de muitas outras iniciativas. É isso que faz a ABEG, enquanto uma das organizações fundadas e dirigidas por indivíduos Batwa.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
Como é que a sociedade ugandesa encara a história e a situação atual dos Batwa e em que medida é que as vozes dos Batwa moldam o discurso nacional sobre estas questões?
SYLVIA KOKUNDA
A sociedade ugandesa vê os Batwa como os mais pobres entre os pobres, como inferiores e ignorantes. Porque não ter terra, não ter acesso à educação, não ter acesso a serviços de saúde, entre outras coisas, torna-nos mais vulneráveis, o que tem mantido e aprofundado a nossa marginalização.
Mas é preciso empenho e coragem para começar e construir algo. Para isso foi criada a Action for Batwa Empowerment Group, para poder amplificar as vozes dos Batwa e também para garantir que podemos estabelecer parcerias e fazer lobby junto do governo, para chegar até mesmo à sociedade, garantindo que a voz da comunidade Batwa é ouvida.
No entanto, temos enfrentado desafios e oposição por parte de organizações que prestam os mesmos serviços, e que afirmam que estão a ajudar os Batwa. No entanto, a verdade é que estas organizações se estão a aproveitar do povo Batwa.
Enquanto organização fundada e liderada por indivíduos Batwa, a ABEG tem uma posição única, que nos impede de tirar partido das nossas comunidades. Quando se é Batwa, ou quando se é uma pessoa em sofrimento, quando se sente a dor na pele, compreendemos o que é esse sofrimento, ou quão profunda é essa dor.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
A conservação-fortaleza contribuiu para o apagamento da história dos Batwa como um povo da floresta próspero. Podia falar-nos sobre a riqueza de conhecimentos e engenho que caracterizavam estas comunidades quando viviam na floresta?
SYLVIA KOKUNDA
Nós, os Batwa, fomos os primeiros a possuir conhecimentos sobre conservação. Por exemplo, no que se refere às colheitas. Como somos caçadores e recolectores, não desenraízamos todas as plantas, nem derrubamos todas as árvores. Colhemos apenas junto às raízes, quando removemos os alimentos. Depois, quando verficamos que os alimentos estão a escassear no sítio onde estamos, mudamos para outro sítio, para permitir que alimentos voltem a crescer aí.
Também possuímos conhecimentos sobre plantas medicinais, somos os nossos próprios médicos, enfermeiros e parteiras. Sabíamos que cada planta tinha o seu próprio significado, sabíamos que tipos eram perigosos ou prejudiciais para o nosso corpo, e quais as plantas medicinais úteis para as nossas vidas.
Tínhamos uma cultura de cestaria, e na fabricação dos nossos cestos tingíamos a ráfia com diferentes folhas e ervas, oriundas de diferentes árvores e plantas, para conseguirmos embelezar os nossos cestos com várias cores, cestos esses que usávamos nas nossas habitações e também para armazenar alimentos, quando estávamos na floresta.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
Com a Minority Rights Group International e outros parceiros locais, implementou o projeto ‘From Disparity to Dignity: Realising Indigenous and Minority Rights in Development.’ Este projeto estudou o acesso à educação e aos serviços de saúde no Uganda, por parte das comunidades Batwa e das pessoas com deficiência, tendo sido utilizado como base para uma sessão de esclarecimento nacional sobre este tema. Pode falar-nos de algumas das principais conclusões deste estudo? Quais os impactos do estudo no domínio dos cuidados de saúde, ao nível das práticas, das políticas ou da sensibilização?
SYLVIA KOKUNDA
Realizámos com a MRG este inquérito sobre o acesso dos Batwa à educação e à saúde. E uma das nossas principais conclusões foi que os Batwa não têm acesso à educação e à saúde porque têm de percorrer distâncias longas.
Para além disso, ao nível da educação, os Batwa não têm comida para comer na escola. Também não têm acesso a materiais educativos, como livros e uniformes. Não se pode ir à escola quando não se tem um uniforme ou quando só se tem roupa suja para vestir. E depois diz-se que a educação é gratuita. Nesta educação supostamente universal, há coisas que se pagam, e que não estão ao alcance dos Batwa. Os estudantes Batwa são segregados pelos outros estudantes. Não se querem sentar ao lado dos estudantes Batwa, por causa da sujidade, porque cheiram mal. E isto faz com que as crianças odeiem a escola e não voltem.
Além disso, a situação é a mesma no acesso à saúde. Há longas distâncias que têm de percorrer para aceder a esses serviços. E há também desigualdade na prestação de serviços. Continua a haver muita marginalização e os Batwa são atendidos em último lugar, depois dos outros membros da comunidade.
Perante os resultados deste estudo, tentámos envolver o governo, entidades relevantes, até mesmo os serviços de saúde. Também participámos em programas de rádio, para nos certificarmos de que havia uma maior sensibilização para o facto de os Batwa serem cidadãos do país, como quaisquer outros. Algumas coisas mudaram, pelo menos, mas não muitas. Há pelo menos um dos hospitais, o Bwindi Community Hospital em Kanungu, onde temos uma equipa grande a prestar apoio às povoações Batwa.
E nalgumas das escolas frequentadas por crianças Batwa a marginalização tem diminuído. Já se começam a enturmar com os colegas e há menos casos de assédio. No entanto, isto não reflecte as nossas esperanças. Nós esperamos conseguir muito mais e melhor do que isto, queremos que os Batwa possam ter acesso à educação, que possam ter bolsas do governo, as bolsas que não têm tido devido à marginalização.
Também queremos conseguir seguros de saúde para o povo Batwa, porque era na floresta que obtínhamos as nossas plantas medicinais, e já não temos acesso nem à floresta, nem às plantas medicinais. E não temos dinheiro para pagar idas aos hospitais. É por isso que pedimos ao governo que providencie seguros de saúde para a população Batwa.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
A Sylvia também faz parte da Land Body Ecologies, uma rede transdisciplinar e grupo de investigação global que explora as ligações profundas entre a saúde mental e a saúde dos ecossistemas. De que forma é que este trabalho com investigadores de outras comunidades Indígenas, que enfrentam desafios semelhantes, fortaleceu o seu trabalho local?
SYLVIA KOKUNDA
Penso que integrar a Land Body Ecologies me ajudou a estabelecer redes. Conseguimos perceber que globalmente estas questões têm muita visibilidade. E isso também nos tem dado oportunidades de expor o nosso trabalho, por exemplo através da minha presença na COP28, a segunda COP em que participo. Isto permitiu-me partilhar experiências, e também criou oportunidades de aprendizagem.
Além disso, a Land Body Ecologies ajudou-nos a produzir um dos primeiros artigos de investigação conduzidos por indivíduos Batwa. Até agora, muitos investigadores de fora vinham fazer trabalho sobre os Batwa. Mas nós não fazíamos parte da investigação. E agora os Batwa participaram no trabalho de investigação, puderam produzir o seu primeiro artigo de investigação, e essa é uma experiência memorável para os Batwa, e memorável para a ABEG.
Créditos: Global Climate and Health Alliance
MARIANA MARQUES
Falando um pouco da Action for Batwa Empowerment Group, quais foram alguns dos projectos mais relevantes que a organização implementou, e quais os seus resultados?
SYLVIA KOKUNDA
A nossa organização, a ABEG, procura principalmente defender os direitos dos Batwa no acesso à educação, promover a sua capacitação económica, e temos tentado erguer a nossa voz para defender os direitos do povo Batwa. Além disso, temos o nosso trabalho de investigação, que se está a tornar numa importante ferramenta de defesa dos direitos das comunidades Batwa.Também temos realizado muitas reuniões com entidades relevantes, com o governo e outras partes interessadas, para que os Batwa sejam cidadãos valorizados no país.
Também trabalhamos na área do treino de competências e do empreendedorismo, onde treinamos jovens mulheres Batwa em competências que as podem ajudar a ter rendimentos, e nesse sentido também lhes fornecemos capital de arranque. Porque nas comunidades onde vivemos, é muito frequente que homens não-Batwa se aproveitem das jovens Batwa, que acabam por engravidar. E os pais dessas crianças não assumem a responsabilidade pelos seus filhos. E constatamos que há muitas jovens que são mães solteiras e que cuidam dos seus filhos sozinhas. É por isso que as treinámos, lhes demos competências e capital de arranque, para poderem começar as suas pequenas empresas, e para que consigam cuidar das suas famílias e dos seus filhos.
E também tentámos conceder empréstimos aos Batwa. Porque os Batwa não têm capacidade para ir aos bancos e obter empréstimos para criar empresas. Tentámos assegurar-lhes alguns empréstimos, para que possam começar os seus próprios projectos e criar as suas empresas, de modo a conseguirem cuidar das suas famílias.
E a verdade é que há entre os Batwa níveis elevados de violência doméstica. Este é outro dos projectos que desenvolvemos, que tem como objectivo reduzir a violência doméstica.
Créditos: Action for Batwa Empowerment Group
MARIANA MARQUES
E tendo em conta os desafios, há alguma possibilidade de os Batwa regressarem ao seu estilo de vida tradicional na floresta? Que visão tem para o futuro das comunidades Batwa no Uganda?
SYLVIA KOKUNDA
Eu vejo o silêncio do governo quanto à possibilidade de nos devolver a floresta. Mas a minha visão, o meu objetivo, é garantir que nós, os Batwa, possamos voltar a ter acesso à floresta, e que sejamos capazes de voltar a praticar a nossa cultura.
Se a nossa cultura não é praticada, vamos perder a nossa identidade cultural no futuro. Sobretudo a geração mais jovem. Eles já não praticam a nossa cultura, e nós não a podemos praticar quando não estamos na floresta, onde a maior parte das nossas coisas estavam, onde está todo o nosso conhecimento.
Somos os primeiros conservacionistas da floresta e não há conservação sem os Povos Indígenas, sem os Batwa. Somos guardiões da floresta, sabemos como conservá-la, e sabemos conservá-la de modo a manter a nossa cultura como povo.
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