Connecting the Dots com Naomi Lanoi Leleto
Neste episódio, exploramos os movimentos para a Descolonização e Indigenização da Filantropia, que estão a transformar a forma como financiadores não-indígenas apoiam organizações indígenas, promovendo também a criação de fundos indígenas e a articulação entre eles.
Para descolonizar a filantropia, temos de desmantelar o colonialismo inerente aos mecanismos de financiamento das organizações ocidentais, quando estas trabalham com parceiros Indígenas. O ponto de partida para ser um verdadeiro aliado passa por ouvir atentamente as comunidades que servimos.
Integrar a International Funders for Indigenous Peoples tem sido fundamental no percurso de aprendizagem da Azimuth e ajudou-nos a responder a uma questão crucial: Como é que os Povos Indígenas podem aceder a fundos e recursos sem serem novamente sujeitos à violência do colonialismo?
A nossa convidada de hoje, Naomi Lanoi Leleto, uma mulher Maasai, oriunda de Narok, no Quénia, está na vanguarda do movimento para descolonizar a filantropia. Naomi integra a direção da International Funders for Indigenous Peoples, e é coordenadora do programa Global Indigenous Grantmaking e do East Africa Advisory Board do Global Greengrants Fund.
Naomi trabalhou desenvolveu um importante trabalho no Programa de Direitos Fundiários das Mulheres da Kenya Land Alliance, procurando garantir que as disposições constitucionais do Quénia relativas a este tema são de facto implementadas. A par deste trabalho de campo, o seu percurso é também incontornável no que respeita à criação e gestão de mecanismos de financiamento inclusivos, que respeitem os direitos e a autodeterminação dos Povos Indígenas, bem como o trabalho de defesa do meio ambiente levado a cabo por estas comunidades.
Naomi completou o mestrado em Estudos Jurídicos no Indigenous Peoples Law and Policy Program da Universidade do Arizona. Contribui para o Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas desde 2011.
Veja a versão em vídeo, em baixo (legendas em Português disponíveis), ou faça scroll para ouvir a versão em podcast (em inglês), ou para ler a versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Crédito: Kanyinke Sena
CARLA SANTOS (AZIMUTH WORLD FOUNDATION)
Talvez pudéssemos começar com o que liga os nossos percursos. A sua jornada de ativismo e aliança com as comunidades Indígenas no Quénia, defendendo os seus direitos à terra e à administração ambiental, é inspiradora para nós. A Azimuth estabeleceu parcerias com duas organizações da comunidade Endorois. A comunidade Endorois foi por duas vezes vítima de deslocamento forçado: primeiro devido a um projeto turístico e, mais recentemente, devido à subida das águas do Lago Bogoria, para onde se tinham mudado. A sua história é uma entre muitas, e penso que a Naomi nos pode ajudar a compreender a amplitude do impacto que as alterações climáticas estão a ter nas comunidades do Quénia. Pode falar-nos um pouco da sua história e talvez aprofundar como é que as alterações climáticas têm um papel na longa luta destas comunidades pelos direitos à terra?
NAOMI LELETO
Muito obrigada, Carla. Deixe-me começar por saudar o vosso o trabalho em torno da descolonização da filantropia. Na verdade, a GGF, no âmbito do Indigenous Peoples Program, no qual trabalho, tem uma abordagem semelhante. E esta é uma abordagem a que chamamos “Indígenizar a Filantropia”. E isso implica, obviamente, repensar os modelos filantrópicos tradicionais, de forma a melhor servir as necessidades e aspirações únicas dos Povos Indígenas. E fazemo-lo baseados em cinco princípios delineados pela IFIP (a International Funders for Indigenous Peoples). O respeito, a reciprocidade, a responsabilidade e a redistribuição. Acrescentámos muito recentemente o último R, que é o da redistribuição.
As abordagens da Filantropia Indígena baseiam-se na compreensão de que o trabalho comunitário é complexo. O trabalho comunitário tem nuances. O trabalho comunitário parte do que é local. Assim sendo, um esforço ou iniciativa eficaz numa comunidade Indígena pode não ser eficaz noutra comunidade. Ou seja, para honrar verdadeiramente a autodeterminação dos Povos Indígenas, o apoio aos esforços de cada comunidade deve estar assente no seu próprio contexto e forma de vida, tal como estes se expressam nos seus sistemas de governação tradicionais.
Permitam-me que comece por dizer que no Vale do Rifte, no Quénia, as flutuações no nível das águas, apesar de não serem uma novidade, apresentam agora novos riscos. Riscos que eu diria imediatos, para populações cada vez maiores, devido à subida dos níveis de sete lagos, pelo menos. Temos o Lago Baringo, onde se encontram os Endorois. Temos o Lago Bogoria, o lago vizinho que está quase a fundir-se com o Lago Baringo. Temos o Lago Turkana, a norte. Temos o Lago Nakuru, temos o Lago Elmenteita, temos o Lago Magadi e penso que o Lago Logipi. E como destacou, isto leva evidentemente ao deslocamento forçado de comunidades Indígenas.
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Nomeadamente, os Endorois no Lago Baringo. Mas também uma outra comunidade sobre a qual gostaria de me debruçar, uma vez que a Azimuth já interagiu com os Endorois. São as comunidades Indígenas El Molo no Lago Turkana. Quero partilhar um pouco mais sobre os El Molo. Os El Molo são Indígenas. São uma comunidade de pescadores no Lago Tukana e são, na verdade, o rosto da extinção, e talvez por isso eu queira destacar a sua situação. São o rosto da extinção e estão a lutar contra a assimilação por parte das tribos maioritárias, bem como a lutar pelos seus direitos à terra devido à invasão por parte das comunidades maioritárias.
O pior de tudo, e é este aspeto que quero aprofundar um pouco mais, é a forma como foram negativamente afectados pelo projeto da central eléctrica do Lago Turkana. Esta é a maior central de energia eólica em África. E é um projeto que ignorou o impacto que teria na comunidade El Molo. E que ignorou outras comunidades Indígenas, como os Samburu, os Turkana, os Rendille, comunidades vizinhas que foram também afectadas pelo projeto. A justificação passou por afirmar que estas comunidades não são Indígenas. E esta é uma decisão que contradiz aquilo que foi a posição da Comissão Africana dos Direitos Humanos – Direitos dos Povos e Humanos – que reconheceu estas comunidades como Indígenas. Estas comunidades já foram reconhecidas como tal, isso já foi documentado. Foi, portanto, uma situação lamentável.
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No fundo, embora as energias renováveis sejam cruciais para mitigar o aquecimento global, na implementação deste tipo de projetos, e de muitos outros projetos pelo mundo fora, são ignorados aspetos ligados à responsabilidade social, à manutenção do tecido social, no que toca às comunidades locais. E a instalação de turbinas eólicas no território dos Povos Indígenas (estamos a falar de mais de 300 turbinas eólicas desta empresa em particular) afetou negativamente as comunidades Indígenas, ocupando as suas terras sem a devida CLPI (Consulta Livre, Prévia e Informada). E isso é uma violação explícita dos seus direitos.
O direito das comunidades Indígenas à terra tem sido, de facto, uma questão controversa e complexa em muitas partes do mundo. E sabemos que os Povos Indígenas têm uma profunda ligação histórica e cultural à terra. Assim, a intersecção entre os direitos fundiários das comunidades Indígenas e as alterações climáticas acrescenta uma nova camada de complexidade a uma questão já de si desafiante.
E, talvez para fechar esta questão, devo enumerar quatro aspetos. Há o aspeto da propriedade. Há o aspeto do controlo. Há o aspeto da utilização. E há o aspeto do acesso. Sem estes quatro aspetos, ou se algum destes quatro aspetos estiver em falta, está-se a violar totalmente os direitos dos Povos Indígenas. Parece-me muito importante destacar isto. E, de facto, olhemos para a situação da subida das águas, olhemos para a situação das alterações climáticas e talvez, assim, podemos perceber quão profundamente enraízadas nestes temas estão as lutas dos Povos Indígenas. É, por isso, uma situação bastante lamentável, Carla.
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CARLA SANTOS
A ciência reconhece cada vez mais o conhecimento Indígena como uma importante ferramenta, capaz de preservar a biodiversidade e de combater as alterações climáticas. Globalmente, temos assistido a uma maior visibilidade das violações dos direitos dos Povos Indígenas, como aconteceu recentemente com as violentas imagens dos Maasai a serem expulsos de Loliondo ou dos Ogiek a serem expulsos da floresta Mau. Está este maior reconhecimento a traduzir-se em mudanças significativas, nomeadamente numa maior participação dos Povos Indígenas na tomada de decisões?
NAOMI LELETO
Podemos afirmar que o reconhecimento do conhecimento tradicional é, claro, um passo positivo, especialmente quando as comunidades Indígenas lutam pela justiça nos tribunais, ou pela sua inclusão em tópicos de discussão de reuniões e conferências. Apesar disso, na prática, a implementação deste reconhecimento é insuficiente. Podemos encontrar um exemplo evidente destas disparidades no caso dos Ogiek, no Quénia, e, claro, no caso dos Maasai, em Loliondo, na Tanzânia, como foi referido.
Mas, permitam-me que faça um breve resumo do caso dos Maasai em Loliondo, porque esta é uma área em que a GGF tem desenvolvido grandes esforços, e onde nos temos claramente posicionado ao lado desta comunidade. E também ao lado da comunidade Ogiek. As injustiças de Loliondo mostram que os Maasai e o seu gado continuam a enfrentar aquilo a que eu apelidaria de expulsão forçada. E esta situação vem de há muito tempo atrás, não se iniciou com a expulsão a que assistimos desde Junho de 2022. Vem de há muito, muito tempo atrás. E acontece para que possa avançar um projeto de turismo exclusivo, de caça, para a realeza dos Emirados Árabes Unidos. E tudo isto começou, de facto, com a conversão. O que aconteceu foi a conversão da propriedade das terras, que deixaram de ser terras das aldeias, para se tornarem reservas de caça. E isto aconteceu sem que a população pastoralista de Loliondo fosse consultada.
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E é engraçado, porque o governo justifica esta conversão promovendo aquilo a que eu chamaria de conservação cujo principal motivo é a apropriação de terras. E a conservação tem sido uma questão que está realmente a afetar muitas comunidades Indígenas. E penso que o objetivo do governo é apelar ao interesse que a comunidade global tem pela conservação da vida selvagem. No entanto, apercebemo-nos de que, nos últimos 30 anos, a conservação não tem sido um problema. Nunca foi um problema para os Maasai.
E a comunidade Maasai não podia aceitar esta situação sem lutar. Por isso tentaram resistir à expulsão recorrendo aos sistemas de justiça, sendo que muitos deles ainda têm processos em curso e muitos outros perderam a vida. E eis a razão por que o fizeram. Em primeiro lugar, as terras que foram ocupadas são essenciais para o modo de vida pastoralista. Em segundo lugar, a decisão não obedeceu aos princípios de CLPI. E, em terceiro lugar, o processo foi ilegal, violento e cruel. E, por último, não houve qualquer diligência para avaliar as consequências desta apropriação de terra. Assim, infelizmente, apesar do potencial para um diálogo mutuamente benéfico entre a comunidade e o governo, esta foi uma expulsão caracterizada pela força, pela corrupção e pela discriminação. Foi, como disse, lamentável. Eu tive a experiência de trabalhar junto destas comunidades, e acho que ainda estou traumatizada pelo que vi e ouvi. A agressão a que recorreram foi desnecessária.
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E volto, agora, aos Ogiek. A expulsão de Sasimwani, em Mau, é também injusta e injustificada, especialmente tendo em conta que o governo queniano ainda nem sequer implementou o histórico processo judicial de 2017, que reconheceu os direitos dos Ogiek às suas terras ancestrais. A que se seguiu um novo parecer do African Court em 2022, motivado pelo fracasso do governo em implementar a decisão de 2017. Isto expõe claramente a situação atual dos Ogiek, que continuam hoje a ser expulsos das suas terras ancestrais.
A situação em torno destes despejos tem adquirido uma crescente complexidade devido ao envolvimento dos mercados de carbono, através dos quais o governo queniano parece estar a solidificar o seu controlo territorial e financeiro sobre activos valiosos, nomeadamente os recursos naturais dos Povos Indígenas. A floresta Mau, a maior do Quénia, está de facto a atrair o interesse de empresas de compensação carbónica e, possivelmente, a influenciar as ações do governo. É por esta razão que os Povos Indígenas, como os Ogiek, são os primeiros e os mais afectados por soluções climáticas questionáveis. Soluções que estão a ser usadas para justificar expulsões e emissões.
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Por exemplo, em Outubro, a Blue Carbon anunciou, isto é, em Outubro do ano passado, um acordo significativo com o governo do Quénia e com o Departamento do Ambiente e das Alterações Climáticas, que tem como objetivo, claro, gerar créditos de carbono numa área muito vasta. E isto é absolutamente lamentável. Ao governo cabe, no mínimo, ter uma discussão com as comunidades que vão ser afetadas. Estamos a falar de comunidades que possuem conhecimentos sobre conservação. Os mercados de carbono estão a ser impostos às comunidades através de abordagens marcadas pela falta de transparência, pela apropriação de terras, sem a devida consulta, e cheias de lacunas. Há muitas lacunas e, novamente, muitas questões por responder.
E qual é a lógica? Qual é a lógica de tudo isto? É permitir que os poluidores paguem aos proprietários da floresta, para que estes absorvam as suas emissões através da capacidade das árvores para absorver carbono. E estes desenvolvimentos sugerem uma mudança na perceção do carbono. Tradicionalmente, e oferecendo uma perspetiva leiga, eu cresci a ouvir dizer que o carbono é venenoso, que é preto. Mas agora o carbono é lucrativo, e penso que é agora branco. É essa a ironia.
Para concluir, gostaria de dizer que no centro de qualquer solução climática deve estar o reconhecimento de que as comunidades locais estão entre as mais vulneráveis ao impacto de catástrofes climáticas, como as inundações, a seca, os incêndios florestais e as restantes catástrofes naturais induzidas pelo clima. Concluo com esta ideia, de que a insegurança em torno do direito à terra oferece poucos incentivos ou capacidades no sentido da mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas. E a forma como as comunidades têm sido envolvidas mostra que os projetos de compensação de carbono são desenhados sem Consentimento Livre, Prévio e Informado, com participação mínima ou inexistente das comunidades nas suas fases de desenvolvimento. O desrespeito pelas estruturas comunitárias de governação fundiária é, por isso, uma tendência muito comum. E penso que é agora esta a linguagem que enquadra a conservação, é esta a linguagem que enquadra as áreas protegidas, é esta a linguagem falada pelos governos africanos.
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Mercado internacional de créditos de carbono é uma grande ameaça às terras e aos direitos indígenas
CARLA SANTOS
Vários relatórios têm demonstrado que, apesar do aumento do financiamento para combater as alterações climáticas, a percentagem que vai diretamente para os Povos Indígenas é residual. Como se pode alterar esta situação, especialmente no que diz respeito aos significativos pacotes de financiamento com que os países se comprometem em eventos como a COP?
NAOMI LELETO
Menos de 1% da assistência oficial designada para as alterações climáticas, e menos de 5% da assistência oficial para a proteção geral do ambiente são atribuídas aos Povos Indígenas. E grande parte do financiamento que recebem acaba por reforçar o mesmo tipo de políticas económicas capitalistas que ameaçam as suas vidas e as suas terras.
Por exemplo, penso que foi em 2021 que 5 governos e 17 financiadores privados se comprometeram a contribuir com 1,7 mil milhões de dólares, na COP de Glasgow, para apoiar a posse de terras por parte das Comunidades Indígenas e Locais. Isto assinalou uma mudança necessária, mas tardia, nas prioridades de financiamento. E as comunidades Indígenas estavam cépticas, e esse cepticismo mantém-se. Onde está o dinheiro? E trata-se de um novo financiamento? Ou este dinheiro foi atribuído a projectos que já estavam em curso? Há muitos problemas de transparência e há muitas perguntas que precisam de resposta.
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Financiamento ambiental quase não chega a indígenas, diz CEO de fundo
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E talvez para ajudar a responder a esta pergunta, eu pergunto também o seguinte: e se houvesse uma forma diferente de apoiar as comunidades? Uma forma de a filantropia poder ser mais significativa do que prejudicial. Mais humilde do que auto-congratulatória. E é essa a abordagem da Global Greengrants, a abordagem da Indigenização da Filantropia, do tipo de filantropia que se envolve com as culturas, os processos de tomada de decisões e as instituições ou sistemas tradicionais Indígenas, não só de modo a transformar a filantropia, mas também para restaurar o equilíbrio, para restaurar a soberania e a auto-determinação, apoiando, claro, a justiça e a equidade para as pessoas e a natureza.
E sei que vários apelos têm sido feitos para que os mecanismos de responsabilização da filantropia e das organizações Indígenas garantam o financiamento direto de organizações lideradas e governadas por Povos Indígenas e Comunidades Locais. É claro que temos uma profunda ligação pessoal com a gestão das terras e dos oceanos, e talvez quando pensamos no modelo descentralizado, ou no modelo de Indigenização da Filantropia da GGF, a nossa missão é assegurar que este financiamento, especialmente o financiamento climático, chega aos movimentos de base de forma eficaz e responsável, em grande escala, e que apoie o impacto duradouro destes movimentos. Estamos empenhados em reforçar os nossos valores, em alinhar a nossa estrutura organizacional e as nossas aspirações para nos tornarmos uma organização cada vez mais eficaz e integrada globalmente, empenhados em conceber o que eu diria serem caminhos, ou um ecossistema, de financiamento para as organizações de base no nosso sector.
CARLA SANTOS
Existe uma tendência global de aumento do financiamento para organizações Indígenas, até por parte de fundações e organizações que tradicionalmente não as apoiavam? Pode partilhar exemplos desta tendência e de como ela pode contribuir para mudanças significativas no funcionamento das organizações Indígenas?
NAOMI LELETO
Para responder a esta pergunta, permitam-me que recorra às estatísticas da IFIP. A IFIP encomendou um estudo global para determinar o financiamento atribuído aos Povos Indígenas. Penso que relativo ao período entre 2016 e 2019. E o relatório aponta para apenas 0,6% do financiamento total. Julgo que este é um aumento em relação a um relatório anterior, que apontava para apenas 0,1%, se não estou enganada. O que isto significa, estes números, é que tem havido um reconhecimento crescente da importância de apoiar as organizações Indígenas, mesmo por parte de fundações e entidades que tradicionalmente não davam prioridade às causas Indígenas. E esta tendência positiva é impulsionada, talvez, por um maior reconhecimento das perspectivas e conhecimentos únicos dos Povos Indígenas, especialmente no âmbito da conservação ambiental e da gestão sustentável dos recursos.
E também o crescimento dos movimentos sociais e uma maior consciencialização das questões Indígenas a nível global, diria que são outros factores que contribuiram para esta tendência. Além disso, os financiadores e as organizações estão a reconhecer a importância de apoiar iniciativas que capacitem as comunidades Indígenas e que resolvam injustiças históricas.
E embora estes exemplos possam ilustrar uma tendência positiva, existem desafios. Os desafios e as disparidades no financiamento continuam a existir. E é essencial continuar a acompanhar os desenvolvimentos em diferentes áreas que defendem, em particular, o apoio equitativo às comunidades Indígenas.
No entanto, penso que temos de reconhecer que a trajectória dos Povos Indígenas está marcada por trauma intergeracional. E são estas as lacunas que não estamos a colmatar. E a maior parte de nós pensa: “Oh, é só uma questão de dinheiro”, mas também há muitas outras formas de apoiar as comunidades Indígenas, incluindo através da solidariedade para com as suas lutas e processos. Penso nisso, e desafio a filantropia a investir mais, enfatizando a importância de dar prioridade ao financiamento de espaços para recuperar deste trauma. Círculos de conversa, recuperação através do diálogo. Nesta área, há lacunas bastante óbvias.
Muito poucas pessoas e financiadores estão dispostos a investir nestas abordagens e perspectivas, porque a maioria dos financiadores se interessa pela documentação, por relatórios, por documentários. E é preciso relembrar que, por exemplo, quando falamos de espaços de recuperação, de círculos de diálogo, de cerimónias, falamos de ocasiões sagradas. Actividades que são praticadas, e não documentadas. E torna-se muito difícil explicar a um financiador que não foi produzido um relatório. Estas são as nossas práticas sagradas. Não as documentamos, praticamo-las. Esta é, por isso, uma área em que tenho verificado lacunas. Eu torço para que os financiadores sejam capazes de apoiar centros de recuperação e cura operados pelas comunidades. Porque estes centros podem servir como espaços seguros e culturalmente sensíveis para várias modalidades de cura. É preciso financiar iniciativas que criem espaços seguros para a recuperação de traumas. E estes espaços devem ser concebidos para serem culturalmente relevantes e livres de juízos de valor. Esta é uma área que eu considero importante destacar.
Mas também é importante fornecer recursos e apoio aos indivíduos que lidam com estes traumas, e encorajar actividades de restabelecimento (e enfatizo o restabelecimento, não a resiliência). Actividades que permitam o restabelecimento. Faço esta nota porque procuro ter o cuidado de evitar o termo “resiliência”, um conceito que pode, por vezes, ser enquadrado numa narrativa colonial, uma narrativa que assume que os Povos Indígenas ultrapassaram as adversidades que lhes foram impostas por forças externas. E esta narrativa pode, na verdade, negar a urgência da situação, bem como a autodeterminação das comunidades Indígenas.
E enfatizar excessivamente a resiliência pode, na realidade, ofuscar as lutas e as dificuldades contínuas que as comunidades Indígenas enfrentam, especialmente aquelas que se relacionam com as suas terra e territórios, ou com a justiça ambiental. É por isso que a situação dos Povos Indígenas do Brasil deve ser vista sob o prisma da autodeterminação, da revitalização cultural e dos contínuos esforços destas comunidades para ultrapassar desafios históricos e contemporâneos. Achei que era importante mencionar isto, para responder a esta pergunta.
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ONU quer maior protagonismo de indígenas contra tripla crise planetária | ONU News
CARLA SANTOS
Obrigada, Naomi. Já se debruçou um pouco sobre esta próxima questão: As comunidades Indígenas enfrentam desafios na obtenção de fundos porque os mecanismos coloniais de atribuição de bolsas ainda detêm a maior parte das verbas disponíveis. Os requisitos burocráticos começam logo com a exigência de que as organizações sejam constituídas ao abrigo de quadros jurídicos específicos, e de que estejam a par dos requisitos legais e fiscais. Existe também uma cultura filantrópica que dá prioridade à satisfação e à centralidade do financiador, o que muitas vezes pode levar as organizações a sacrificar as suas prioridades, optando por iniciativas ou formas de funcionamento mais consensuais. Mesmo os requisitos relativos ao enquadramento dos projetos podem constituir obstáculos, porque as estratégias tradicionais, e eficazes, utilizadas pelas comunidades para resolver os seus problemas podem diferir dos moldes convencionais da filantropia. Os Povos Indígenas estão a adaptar-se, particularmente a geração mais jovem, por isso a questão é a seguinte: como é que a filantropia pode mudar estes processos para melhor servir as comunidades Indígenas, respeitando as suas próprias metodologias?
NAOMI LELETO
Nós acreditamos, por exemplo, que quando atribuímos bolsas, vamos encontrar soluções melhores e mais adequadas para questões ambientais e de justiça social se estas forem desenvolvidas por quem é diretamente afetado por estes desafios. Baseamos o nosso trabalho numa teoria da mudança, centrada no poder que os actores locais têm para impulsionar mudanças sistémicas.
Estou a pensar nos Povos Indígenas que marcham para impedir o desenvolvimento petrolífero na Amazónia, nas equipas de cidadãos que se organizam para monitorizar a água industrial, e em muitos, muitos outros exemplos. Penso ainda no ativismo dos jovens em torno de várias injustiças climáticas. Vemos hoje os jovens a reclamarem essa voz.
E também em todas as histórias que temos vindo a discutir, desde os Ogiek aos Maasai em Loliondo… E, na verdade, acho que é preciso reforçar que quando pensamos na abordagem da GGF, e na forma como acompanhou algumas destas comunidades, a redução do peso da burocracia foi sempre crucial. Por exemplo, quando se ajudam comunidades que estão a ser expulsas das suas terras, que estão a ser deslocadas, e lhes é exigido que preencham formulários muito pormenorizados. Temos de ter presente que algumas dessas comunidades nem sequer têm computadores, não têm a possibillidade de se sentarem para preencher formulários. Quando tentamos mudar a mentalidade, mudar as abordagens na forma como são atribuídas bolsas, como é que podemos assegurar uma redução do peso da burocracia nesses processos? Será que podemos receber vídeos, por exemplo, em vez de um relatório escrito? Será que podemos incentivar os jovens, pedindo-lhes que utilizem – agora é o TikTok que está na moda – a tecnologia que é para eles mais intuitiva? É preciso ser flexível e tornar o trabalho e o financiamento um pouco diferentes, se não mesmo divertidos.
Mesmo quando pensamos em bolsas temáticas, é preciso ter presente, como disse no início, que o trabalho comunitário tem nuances, parte do que é local, é complexo. Assim, não podemos assumir que aquilo que funciona na América Latina vai funcionar no Quénia. Não podemos assumir que aquilo que funciona na Ásia vai funcionar na Austrália, com os Povos Indígenas Aborígenes.
A compreensão e aceitação deste facto é absolutamente essencial. É preciso muita flexibilidade e muita inovação. Mas o mais importante é partir sempre da humildade. Porque quando se trabalha tendo a humildade como ponto de partida, é mais fácil compreender as comunidades e as lutas em que participam.
CARLA SANTOS
Obrigada. A Azimuth tem tido uma experiência muito gratificante ao apoiar pequenas organizações de base. A Global Greengrants desenvolve um trabalho muito significativo nesta área há vários anos. Pode contar-nos um episódio ou partilhar uma observação que mostre a importância de financiar diretamente iniciativas Indígenas?
NAOMI LELETO
Se falamos de pequenas bolsas, de trabalhar diretamente com as comunidades, penso que é essa a nossa área de atuação, e aí reside a nossa identidade.
E uma das coisas que realmente fizemos, especialmente no âmbito do nosso modelo descentralizado, foi compreender que as comunidades provêm de áreas geográficas por vezes muito remotas. No mínimo, temos de reconhecer que quando lançamos concursos para a apresentação de propostas, nem todas as organizações terão acesso a essa informação. Há comunidades, por exemplo, que não estão estruturadas, mas que estão a fazer um trabalho fantástico. Há comunidades que não têm acesso a um computador e nem sequer podem saber que há essa oportunidade de financiamento.
Na GGF, o que tentamos fazer é chegar a essas comunidades através dos nossos assessores, que trabalham a nível local, que são especialistas, que estão dentro das comunidades, e que podem pelo menos ter conhecimento de algumas das iniciativas levadas a cabo pelas comunidades. E, nesse sentido, estamos a apoiar e a chegar a comunidades que foram excluídas do panorama do financiamento durante muitos, muitos anos. É aí que apostamos.
Quando se fala de organizações de base, quando ouço falar desse tipo de trabalho, tenho tendência para perguntar: o que é uma organização de base? A que é que se refere esse termo? Porque, durante muitos anos, as oportunidades de financiamento estiveram capturadas. Capturadas por organizações que sabem falar inglês, capturadas por organizações que podem aceder aos concursos e capturadas por organizações que se sentem superiores e cujo único objectivo é obter fundos. Mas quando se vai de facto às bases, percebemos que não está a ser esse o destino dos fundos. As pessoas mais vulneráveis, as pessoas mais afectadas, não estão a receber esse dinheiro.
Por isso enfatizo o quão belo é trabalhar com as comunidades, o quão belo é desenvolver relações com as comunidades, o quão belo é confiar, permitindo-lhes fazerem o que quiserem com os fundos que lhes foram atribuídos. Porque essa é a outra questão, a confiança. Há sempre imensas avaliações. Vemos os financiadores a gastar tanto dinheiro em viagens para visitar comunidades e avaliar os resultados dos projectos. São recursos que podiam ter muito maior utilidade. Há quem gaste 10.000 dólares para ir avaliar um projeto de 3.000 dólares. Penso que é mais do que tempo de nos sentarmos e de questionarmos as abordagens aos processos de financiamento. Será que estamos a ser sérios? Será que estamos a pensar nas intenções que guiam o nosso trabalho?
CARLA SANTOS
Que avanços testemunhou no movimento para Descolonizar a Filantropia? Que frustrações persistem? E que obstáculos são particularmente desafiantes?
NAOMI LELETO
Descolonizar é um bom termo. Eu normalmente prefiro dizer “Indigenizar a Filantropia”. E trata-se de mergulhar de forma crítica na importância das culturas e cosmovisões Indígenas. Quando procuramos descolonizar a filantropia, temos de mergulhar nos processos Indígenas de tomada de decisões, temos de apoiar e trabalhar em grande proximidade com os sistemas de governação tradicionais. Isto não é só uma forma de transformar a filantropia, é também uma forma de restaurar o equilíbrio e a soberania, factores que sustentam mais justiça e equidade para as pessoas e a natureza. E apercebemo-nos de que a liderança Indígena tradicional, que durante muito tempo foi negligenciada, é necessária e é fundamental para conseguir esta transformação.
E tenho assistido a uma mudança, a um reforço dos financiamentos que promovem iniciativas assentes nos modelos de governação tradicional dos Povos Indígenas, centradas na formas de associação e tomada de decisões tradicionais. Mas há muitos desafios, como foi referido. Especialmente no que se refere aos pressupostos que guiam os financiadores. É realmente preciso examinar os nossos pressupostos, no que toca à atribuição de bolsas. Fazê-lo irá melhorar as hipóteses de colaboração, especialmente com os Povos Indígenas. E precisamos de reconhecer que dentro destas comunidades, como em quaisquer outras, existem pontos de vista diferentes, existem diferentes exigências, e não podemos se podem assumir posições unificadas.
Também não devemos assumir que as necessidades dos Povos Indígenas são iguais às nossas próprias necessidades. Ao visitarmos uma comunidade, podemos reparar nas mulheres que percorrem longas distâncias para ir buscar lenha. “O que devo, então, fazer? Devo apoiar estas pessoas instalando um painel solar”. Isto não passa de uma suposição. Quem disse que são essas as necessidades da comunidade? Os financiadores raramente tomam o tempo para cultivar e manter relações. Isso requer confiança, como já referi. Requer humildade, colaboração, alinhamento ao nível das missões, e requer respeito pela comunidade.
O que vejo é a existência de uma série de dinâmicas de poder, e é necessário desmistificar algumas destas abordagens. Porque também temos vindo a notar, como já disse antes, menos CLPI. As comunidades não são envolvidas no desenho dos projetos. Os financiadores chegam e implementam. As comunidades não estiveram presentes quando se começou um projeto, quando se pensou no projeto, mas o projeto é implementado no seio dessas comunidades. Como é que isso pode funcionar? As comunidades não contribuíram para o projeto, nem sequer com ideias. Mas essa ideia é-lhes imposta, porque alguém assume o papel de salvador, capaz de acabar com as suas dificuldades. Isso não vai funcionar.
CARLA SANTOS
A sua experiência enquanto advogada e ativista deu-lhe uma perspetiva única sobre a luta política pelos direitos dos Povos Indígenas. A Naomi participou na elaboração de políticas e de resoluções internacionais, em organismos como o Fórum Permanente para as Questões Indígenas da ONU. Mas tem também muita experiência com abordagens práticas, através do seu trabalho de defesa dos direitos das mulheres à terra, no Quénia. Pode dizer-nos como se complementam estas duas abordagens, e como contribuem para avançar os direitos dos Povos Indígenas?
NAOMI LELETO
Tenho de começar por dizer que as minhas experiências foram fundamentais para o trabalho que desenvolvo hoje, e digo isto com muita humildade. Trabalhei com mulheres na linha da frente. Trabalhei com organizações de base. E penso até no trabalho que desenvolvi a nível nacional, antes de fazer a transição para a filantropia. Na verdade, estava um pouco cética quando comecei a trabalhar em filantropia, devido às experiências que tinha tido até então.
E quando ingressei no mundo da filantropia, apercebi-me de que estou a operar a partir de uma posição de privilégio. E isso significa que devo garantir que o meu trabalho e as minhas abordagens se baseiam na humildade. Porque eu passei do pólo de quem recebe fundos, para o pólo de quem atribui fundos. E para que eu possa realmente fazer este trabalho, tenho de o fazer com muita humildade, tenho de saber compreender e identificar muitas dinâmicas.
E vou contar uma história que me fez questionar o campo da filantropia, muito antes de saber que alguma vez passaria para o lado da atribuição de fundos. Esta história passa-se numa altura em que eu estava a supervisionar um determinado projeto. Foram atribuídos fundos à organização de base com quem eu estava a trabalhar, para que a comunidade construísse um poço. E esta história mostra porque sou cética em relação aos processos de avaliação. Então, o poço foi construído e a comunidade estava satisfeita. O poço ficava num lugar um pouco afastado da comunidade. E quando foi posto em funcionamento, a comunidade definiu regras e regulamentos sobre o seu uso.
De manhã, as mulheres deviam ir buscar água. Talvez entre as 8 e as 11 horas da manhã. Depois, a partir das 11 horas, os animais vêm beber água. A parte da região de que estou a falar é muito quente e muito seca. Este processo é muito sistemático, e há uma razão para isso, porque se os animais vierem demasiado rápido, o poço fica sujo.
Esta financiadora chega e diz que quer encontrar-se com as mulheres às 8 da manhã. E as mulheres tinham de seguir as regras religiosamente, porque a água é muito escassa naquela parte do mundo, e porque seguem um sistema tradicional, que estabelece regras. Esta financiadora precisava, então, de se encontrar com as mulheres da comunidade. E não podia haver uma única reunião. As mulheres e os homens têm sempre reuniões diferentes. Então, a financiadora disse: “Quero reunir-me primeiro com as mulheres e depois com os homens. Porque tenho muito pouco tempo, preciso de me ir embora, tenho outras coisas para fazer.” Achei que isso não fazia nenhum sentido, porque nem sequer quis saber como funcionava a comunidade. Tentei dizer-lhe: “As mulheres não estão disponíveis de manhã, talvez possamos fazer esta reunião à tarde?” Ao que me respondeu, “Está muito calor nesta parte do mundo e acho que não consigo aguentar o calor a essa hora. Por isso, só me posso encontrar com a comunidade de manhã, porque é o único tempo de que disponho, e depois continuo com os meus outros compromissos”.
Partilho esta história que me lembra sempre de como os financiadores podem ser insensíveis. Na verdade, optei por nem sequer comunicar isto aos organizadores, às pessoas que estavam a ajudar a mobilizar a comunidade, porque não queria mudar o modo de funcionamento da comunidade. Por isso, depois de ter escrito e comunicado isto à financiadora, e de ela não ter mostrado compreensão, disse: “Muito bem, acho que, sendo a primeira vez, vamos ter de ver como isto corre”. E quando chegámos ao local, não estava lá ninguém… O ponto de encontro era debaixo de umas árvores. Ninguém apareceu, até à uma da tarde. Durante todo este tempo, ela esteve a reclamar. E relembro que ela não podia ir embora, porque precisava de tirar fotografias, de fazer vídeos, tudo isso.
E quando a comunidade chegou, ela estava irritada e foi insensível. Mas eu tive o privilégio de fazer a tradução, e certifiquei-me de que traduzia… Ela não percebia porque é que estava a falar com muita amargura, mas as comunidades continuavam a sorrir. Enfim, é uma história para outro dia.
Mas o que estou a tentar dizer é que, agora que estou do outro lado, tenho de garantir que trabalhamos para construir relações, que trabalhamos para reforçar a confiança, que temos menos pressupostos, que eu tenho menos pressupostos no meu trabalho, e que respeito e abordo as comunidades do ponto de vista delas, e não do meu ponto de vista. Esta seria, portanto, a minha resposta a essa pergunta.
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International Funders for Indigenous Peoples - Official Website
Connecting the Dots com Naomi Lanoi Leleto
Neste episódio, exploramos os movimentos para a Descolonização e Indigenização da Filantropia, que estão a transformar a forma como financiadores não-indígenas apoiam organizações indígenas, promovendo também a criação de fundos indígenas e a articulação entre eles.
Para descolonizar a filantropia, temos de desmantelar o colonialismo inerente aos mecanismos de financiamento das organizações ocidentais, quando estas trabalham com parceiros Indígenas. O ponto de partida para ser um verdadeiro aliado passa por ouvir atentamente as comunidades que servimos.
Integrar a International Funders for Indigenous Peoples tem sido fundamental no percurso de aprendizagem da Azimuth e ajudou-nos a responder a uma questão crucial: Como é que os Povos Indígenas podem aceder a fundos e recursos sem serem novamente sujeitos à violência do colonialismo?
A nossa convidada de hoje, Naomi Lanoi Leleto, uma mulher Maasai, oriunda de Narok, no Quénia, está na vanguarda do movimento para descolonizar a filantropia. Naomi integra a direção da International Funders for Indigenous Peoples, e é coordenadora do programa Global Indigenous Grantmaking e do East Africa Advisory Board do Global Greengrants Fund.
Naomi trabalhou desenvolveu um importante trabalho no Programa de Direitos Fundiários das Mulheres da Kenya Land Alliance, procurando garantir que as disposições constitucionais do Quénia relativas a este tema são de facto implementadas. A par deste trabalho de campo, o seu percurso é também incontornável no que respeita à criação e gestão de mecanismos de financiamento inclusivos, que respeitem os direitos e a autodeterminação dos Povos Indígenas, bem como o trabalho de defesa do meio ambiente levado a cabo por estas comunidades.
Naomi completou o mestrado em Estudos Jurídicos no Indigenous Peoples Law and Policy Program da Universidade do Arizona. Contribui para o Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas desde 2011.
Veja a versão em vídeo, em baixo (legendas em Português disponíveis), ou faça scroll para ouvir a versão em podcast (em inglês), ou para ler a versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Crédito: Kanyinke Sena
CARLA SANTOS (AZIMUTH WORLD FOUNDATION)
Talvez pudéssemos começar com o que liga os nossos percursos. A sua jornada de ativismo e aliança com as comunidades Indígenas no Quénia, defendendo os seus direitos à terra e à administração ambiental, é inspiradora para nós. A Azimuth estabeleceu parcerias com duas organizações da comunidade Endorois. A comunidade Endorois foi por duas vezes vítima de deslocamento forçado: primeiro devido a um projeto turístico e, mais recentemente, devido à subida das águas do Lago Bogoria, para onde se tinham mudado. A sua história é uma entre muitas, e penso que a Naomi nos pode ajudar a compreender a amplitude do impacto que as alterações climáticas estão a ter nas comunidades do Quénia. Pode falar-nos um pouco da sua história e talvez aprofundar como é que as alterações climáticas têm um papel na longa luta destas comunidades pelos direitos à terra?
NAOMI LELETO
Muito obrigada, Carla. Deixe-me começar por saudar o vosso o trabalho em torno da descolonização da filantropia. Na verdade, a GGF, no âmbito do Indigenous Peoples Program, no qual trabalho, tem uma abordagem semelhante. E esta é uma abordagem a que chamamos “Indígenizar a Filantropia”. E isso implica, obviamente, repensar os modelos filantrópicos tradicionais, de forma a melhor servir as necessidades e aspirações únicas dos Povos Indígenas. E fazemo-lo baseados em cinco princípios delineados pela IFIP (a International Funders for Indigenous Peoples). O respeito, a reciprocidade, a responsabilidade e a redistribuição. Acrescentámos muito recentemente o último R, que é o da redistribuição.
As abordagens da Filantropia Indígena baseiam-se na compreensão de que o trabalho comunitário é complexo. O trabalho comunitário tem nuances. O trabalho comunitário parte do que é local. Assim sendo, um esforço ou iniciativa eficaz numa comunidade Indígena pode não ser eficaz noutra comunidade. Ou seja, para honrar verdadeiramente a autodeterminação dos Povos Indígenas, o apoio aos esforços de cada comunidade deve estar assente no seu próprio contexto e forma de vida, tal como estes se expressam nos seus sistemas de governação tradicionais.
Permitam-me que comece por dizer que no Vale do Rifte, no Quénia, as flutuações no nível das águas, apesar de não serem uma novidade, apresentam agora novos riscos. Riscos que eu diria imediatos, para populações cada vez maiores, devido à subida dos níveis de sete lagos, pelo menos. Temos o Lago Baringo, onde se encontram os Endorois. Temos o Lago Bogoria, o lago vizinho que está quase a fundir-se com o Lago Baringo. Temos o Lago Turkana, a norte. Temos o Lago Nakuru, temos o Lago Elmenteita, temos o Lago Magadi e penso que o Lago Logipi. E como destacou, isto leva evidentemente ao deslocamento forçado de comunidades Indígenas.
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No Quénia, as águas sobem e dois lagos unem-se. Teme-se um “desastre ecológico” | Alterações climáticas | PÚBLICO
Nomeadamente, os Endorois no Lago Baringo. Mas também uma outra comunidade sobre a qual gostaria de me debruçar, uma vez que a Azimuth já interagiu com os Endorois. São as comunidades Indígenas El Molo no Lago Turkana. Quero partilhar um pouco mais sobre os El Molo. Os El Molo são Indígenas. São uma comunidade de pescadores no Lago Tukana e são, na verdade, o rosto da extinção, e talvez por isso eu queira destacar a sua situação. São o rosto da extinção e estão a lutar contra a assimilação por parte das tribos maioritárias, bem como a lutar pelos seus direitos à terra devido à invasão por parte das comunidades maioritárias.
O pior de tudo, e é este aspeto que quero aprofundar um pouco mais, é a forma como foram negativamente afectados pelo projeto da central eléctrica do Lago Turkana. Esta é a maior central de energia eólica em África. E é um projeto que ignorou o impacto que teria na comunidade El Molo. E que ignorou outras comunidades Indígenas, como os Samburu, os Turkana, os Rendille, comunidades vizinhas que foram também afectadas pelo projeto. A justificação passou por afirmar que estas comunidades não são Indígenas. E esta é uma decisão que contradiz aquilo que foi a posição da Comissão Africana dos Direitos Humanos – Direitos dos Povos e Humanos – que reconheceu estas comunidades como Indígenas. Estas comunidades já foram reconhecidas como tal, isso já foi documentado. Foi, portanto, uma situação lamentável.
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Quénia: Inundações destroem casas no vale do Rift – DW
No fundo, embora as energias renováveis sejam cruciais para mitigar o aquecimento global, na implementação deste tipo de projetos, e de muitos outros projetos pelo mundo fora, são ignorados aspetos ligados à responsabilidade social, à manutenção do tecido social, no que toca às comunidades locais. E a instalação de turbinas eólicas no território dos Povos Indígenas (estamos a falar de mais de 300 turbinas eólicas desta empresa em particular) afetou negativamente as comunidades Indígenas, ocupando as suas terras sem a devida CLPI (Consulta Livre, Prévia e Informada). E isso é uma violação explícita dos seus direitos.
O direito das comunidades Indígenas à terra tem sido, de facto, uma questão controversa e complexa em muitas partes do mundo. E sabemos que os Povos Indígenas têm uma profunda ligação histórica e cultural à terra. Assim, a intersecção entre os direitos fundiários das comunidades Indígenas e as alterações climáticas acrescenta uma nova camada de complexidade a uma questão já de si desafiante.
E, talvez para fechar esta questão, devo enumerar quatro aspetos. Há o aspeto da propriedade. Há o aspeto do controlo. Há o aspeto da utilização. E há o aspeto do acesso. Sem estes quatro aspetos, ou se algum destes quatro aspetos estiver em falta, está-se a violar totalmente os direitos dos Povos Indígenas. Parece-me muito importante destacar isto. E, de facto, olhemos para a situação da subida das águas, olhemos para a situação das alterações climáticas e talvez, assim, podemos perceber quão profundamente enraízadas nestes temas estão as lutas dos Povos Indígenas. É, por isso, uma situação bastante lamentável, Carla.
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Visão | Alterações climáticas têm “impacto devastador” nas comunidades indígenas
CARLA SANTOS
A ciência reconhece cada vez mais o conhecimento Indígena como uma importante ferramenta, capaz de preservar a biodiversidade e de combater as alterações climáticas. Globalmente, temos assistido a uma maior visibilidade das violações dos direitos dos Povos Indígenas, como aconteceu recentemente com as violentas imagens dos Maasai a serem expulsos de Loliondo ou dos Ogiek a serem expulsos da floresta Mau. Está este maior reconhecimento a traduzir-se em mudanças significativas, nomeadamente numa maior participação dos Povos Indígenas na tomada de decisões?
NAOMI LELETO
Podemos afirmar que o reconhecimento do conhecimento tradicional é, claro, um passo positivo, especialmente quando as comunidades Indígenas lutam pela justiça nos tribunais, ou pela sua inclusão em tópicos de discussão de reuniões e conferências. Apesar disso, na prática, a implementação deste reconhecimento é insuficiente. Podemos encontrar um exemplo evidente destas disparidades no caso dos Ogiek, no Quénia, e, claro, no caso dos Maasai, em Loliondo, na Tanzânia, como foi referido.
Mas, permitam-me que faça um breve resumo do caso dos Maasai em Loliondo, porque esta é uma área em que a GGF tem desenvolvido grandes esforços, e onde nos temos claramente posicionado ao lado desta comunidade. E também ao lado da comunidade Ogiek. As injustiças de Loliondo mostram que os Maasai e o seu gado continuam a enfrentar aquilo a que eu apelidaria de expulsão forçada. E esta situação vem de há muito tempo atrás, não se iniciou com a expulsão a que assistimos desde Junho de 2022. Vem de há muito, muito tempo atrás. E acontece para que possa avançar um projeto de turismo exclusivo, de caça, para a realeza dos Emirados Árabes Unidos. E tudo isto começou, de facto, com a conversão. O que aconteceu foi a conversão da propriedade das terras, que deixaram de ser terras das aldeias, para se tornarem reservas de caça. E isto aconteceu sem que a população pastoralista de Loliondo fosse consultada.
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Tanzânia: Milhares de indígenas Maasai fogem para o mato após brutal repressão policial
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E é engraçado, porque o governo justifica esta conversão promovendo aquilo a que eu chamaria de conservação cujo principal motivo é a apropriação de terras. E a conservação tem sido uma questão que está realmente a afetar muitas comunidades Indígenas. E penso que o objetivo do governo é apelar ao interesse que a comunidade global tem pela conservação da vida selvagem. No entanto, apercebemo-nos de que, nos últimos 30 anos, a conservação não tem sido um problema. Nunca foi um problema para os Maasai.
E a comunidade Maasai não podia aceitar esta situação sem lutar. Por isso tentaram resistir à expulsão recorrendo aos sistemas de justiça, sendo que muitos deles ainda têm processos em curso e muitos outros perderam a vida. E eis a razão por que o fizeram. Em primeiro lugar, as terras que foram ocupadas são essenciais para o modo de vida pastoralista. Em segundo lugar, a decisão não obedeceu aos princípios de CLPI. E, em terceiro lugar, o processo foi ilegal, violento e cruel. E, por último, não houve qualquer diligência para avaliar as consequências desta apropriação de terra. Assim, infelizmente, apesar do potencial para um diálogo mutuamente benéfico entre a comunidade e o governo, esta foi uma expulsão caracterizada pela força, pela corrupção e pela discriminação. Foi, como disse, lamentável. Eu tive a experiência de trabalhar junto destas comunidades, e acho que ainda estou traumatizada pelo que vi e ouvi. A agressão a que recorreram foi desnecessária.
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Visão | Massai pedem à ONU que Tanzânia não os expulse das terras para criar uma reserva
E volto, agora, aos Ogiek. A expulsão de Sasimwani, em Mau, é também injusta e injustificada, especialmente tendo em conta que o governo queniano ainda nem sequer implementou o histórico processo judicial de 2017, que reconheceu os direitos dos Ogiek às suas terras ancestrais. A que se seguiu um novo parecer do African Court em 2022, motivado pelo fracasso do governo em implementar a decisão de 2017. Isto expõe claramente a situação atual dos Ogiek, que continuam hoje a ser expulsos das suas terras ancestrais.
A situação em torno destes despejos tem adquirido uma crescente complexidade devido ao envolvimento dos mercados de carbono, através dos quais o governo queniano parece estar a solidificar o seu controlo territorial e financeiro sobre activos valiosos, nomeadamente os recursos naturais dos Povos Indígenas. A floresta Mau, a maior do Quénia, está de facto a atrair o interesse de empresas de compensação carbónica e, possivelmente, a influenciar as ações do governo. É por esta razão que os Povos Indígenas, como os Ogiek, são os primeiros e os mais afectados por soluções climáticas questionáveis. Soluções que estão a ser usadas para justificar expulsões e emissões.
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Na véspera da COP28, ONGs publicam declaração sobre despejos de indígenas Ogiek no Quênia
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Por exemplo, em Outubro, a Blue Carbon anunciou, isto é, em Outubro do ano passado, um acordo significativo com o governo do Quénia e com o Departamento do Ambiente e das Alterações Climáticas, que tem como objetivo, claro, gerar créditos de carbono numa área muito vasta. E isto é absolutamente lamentável. Ao governo cabe, no mínimo, ter uma discussão com as comunidades que vão ser afetadas. Estamos a falar de comunidades que possuem conhecimentos sobre conservação. Os mercados de carbono estão a ser impostos às comunidades através de abordagens marcadas pela falta de transparência, pela apropriação de terras, sem a devida consulta, e cheias de lacunas. Há muitas lacunas e, novamente, muitas questões por responder.
E qual é a lógica? Qual é a lógica de tudo isto? É permitir que os poluidores paguem aos proprietários da floresta, para que estes absorvam as suas emissões através da capacidade das árvores para absorver carbono. E estes desenvolvimentos sugerem uma mudança na perceção do carbono. Tradicionalmente, e oferecendo uma perspetiva leiga, eu cresci a ouvir dizer que o carbono é venenoso, que é preto. Mas agora o carbono é lucrativo, e penso que é agora branco. É essa a ironia.
Para concluir, gostaria de dizer que no centro de qualquer solução climática deve estar o reconhecimento de que as comunidades locais estão entre as mais vulneráveis ao impacto de catástrofes climáticas, como as inundações, a seca, os incêndios florestais e as restantes catástrofes naturais induzidas pelo clima. Concluo com esta ideia, de que a insegurança em torno do direito à terra oferece poucos incentivos ou capacidades no sentido da mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas. E a forma como as comunidades têm sido envolvidas mostra que os projetos de compensação de carbono são desenhados sem Consentimento Livre, Prévio e Informado, com participação mínima ou inexistente das comunidades nas suas fases de desenvolvimento. O desrespeito pelas estruturas comunitárias de governação fundiária é, por isso, uma tendência muito comum. E penso que é agora esta a linguagem que enquadra a conservação, é esta a linguagem que enquadra as áreas protegidas, é esta a linguagem falada pelos governos africanos.
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Mercado internacional de créditos de carbono é uma grande ameaça às terras e aos direitos indígenas
CARLA SANTOS
Vários relatórios têm demonstrado que, apesar do aumento do financiamento para combater as alterações climáticas, a percentagem que vai diretamente para os Povos Indígenas é residual. Como se pode alterar esta situação, especialmente no que diz respeito aos significativos pacotes de financiamento com que os países se comprometem em eventos como a COP?
NAOMI LELETO
Menos de 1% da assistência oficial designada para as alterações climáticas, e menos de 5% da assistência oficial para a proteção geral do ambiente são atribuídas aos Povos Indígenas. E grande parte do financiamento que recebem acaba por reforçar o mesmo tipo de políticas económicas capitalistas que ameaçam as suas vidas e as suas terras.
Por exemplo, penso que foi em 2021 que 5 governos e 17 financiadores privados se comprometeram a contribuir com 1,7 mil milhões de dólares, na COP de Glasgow, para apoiar a posse de terras por parte das Comunidades Indígenas e Locais. Isto assinalou uma mudança necessária, mas tardia, nas prioridades de financiamento. E as comunidades Indígenas estavam cépticas, e esse cepticismo mantém-se. Onde está o dinheiro? E trata-se de um novo financiamento? Ou este dinheiro foi atribuído a projectos que já estavam em curso? Há muitos problemas de transparência e há muitas perguntas que precisam de resposta.
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Financiamento ambiental quase não chega a indígenas, diz CEO de fundo
https://epbr.com.br/financiamento-ambiental-quase-nao-chega-aos-indigenas-alerta-diretor-de-fundo/
E talvez para ajudar a responder a esta pergunta, eu pergunto também o seguinte: e se houvesse uma forma diferente de apoiar as comunidades? Uma forma de a filantropia poder ser mais significativa do que prejudicial. Mais humilde do que auto-congratulatória. E é essa a abordagem da Global Greengrants, a abordagem da Indigenização da Filantropia, do tipo de filantropia que se envolve com as culturas, os processos de tomada de decisões e as instituições ou sistemas tradicionais Indígenas, não só de modo a transformar a filantropia, mas também para restaurar o equilíbrio, para restaurar a soberania e a auto-determinação, apoiando, claro, a justiça e a equidade para as pessoas e a natureza.
E sei que vários apelos têm sido feitos para que os mecanismos de responsabilização da filantropia e das organizações Indígenas garantam o financiamento direto de organizações lideradas e governadas por Povos Indígenas e Comunidades Locais. É claro que temos uma profunda ligação pessoal com a gestão das terras e dos oceanos, e talvez quando pensamos no modelo descentralizado, ou no modelo de Indigenização da Filantropia da GGF, a nossa missão é assegurar que este financiamento, especialmente o financiamento climático, chega aos movimentos de base de forma eficaz e responsável, em grande escala, e que apoie o impacto duradouro destes movimentos. Estamos empenhados em reforçar os nossos valores, em alinhar a nossa estrutura organizacional e as nossas aspirações para nos tornarmos uma organização cada vez mais eficaz e integrada globalmente, empenhados em conceber o que eu diria serem caminhos, ou um ecossistema, de financiamento para as organizações de base no nosso sector.
CARLA SANTOS
Existe uma tendência global de aumento do financiamento para organizações Indígenas, até por parte de fundações e organizações que tradicionalmente não as apoiavam? Pode partilhar exemplos desta tendência e de como ela pode contribuir para mudanças significativas no funcionamento das organizações Indígenas?
NAOMI LELETO
Para responder a esta pergunta, permitam-me que recorra às estatísticas da IFIP. A IFIP encomendou um estudo global para determinar o financiamento atribuído aos Povos Indígenas. Penso que relativo ao período entre 2016 e 2019. E o relatório aponta para apenas 0,6% do financiamento total. Julgo que este é um aumento em relação a um relatório anterior, que apontava para apenas 0,1%, se não estou enganada. O que isto significa, estes números, é que tem havido um reconhecimento crescente da importância de apoiar as organizações Indígenas, mesmo por parte de fundações e entidades que tradicionalmente não davam prioridade às causas Indígenas. E esta tendência positiva é impulsionada, talvez, por um maior reconhecimento das perspectivas e conhecimentos únicos dos Povos Indígenas, especialmente no âmbito da conservação ambiental e da gestão sustentável dos recursos.
E também o crescimento dos movimentos sociais e uma maior consciencialização das questões Indígenas a nível global, diria que são outros factores que contribuiram para esta tendência. Além disso, os financiadores e as organizações estão a reconhecer a importância de apoiar iniciativas que capacitem as comunidades Indígenas e que resolvam injustiças históricas.
E embora estes exemplos possam ilustrar uma tendência positiva, existem desafios. Os desafios e as disparidades no financiamento continuam a existir. E é essencial continuar a acompanhar os desenvolvimentos em diferentes áreas que defendem, em particular, o apoio equitativo às comunidades Indígenas.
No entanto, penso que temos de reconhecer que a trajectória dos Povos Indígenas está marcada por trauma intergeracional. E são estas as lacunas que não estamos a colmatar. E a maior parte de nós pensa: “Oh, é só uma questão de dinheiro”, mas também há muitas outras formas de apoiar as comunidades Indígenas, incluindo através da solidariedade para com as suas lutas e processos. Penso nisso, e desafio a filantropia a investir mais, enfatizando a importância de dar prioridade ao financiamento de espaços para recuperar deste trauma. Círculos de conversa, recuperação através do diálogo. Nesta área, há lacunas bastante óbvias.
Muito poucas pessoas e financiadores estão dispostos a investir nestas abordagens e perspectivas, porque a maioria dos financiadores se interessa pela documentação, por relatórios, por documentários. E é preciso relembrar que, por exemplo, quando falamos de espaços de recuperação, de círculos de diálogo, de cerimónias, falamos de ocasiões sagradas. Actividades que são praticadas, e não documentadas. E torna-se muito difícil explicar a um financiador que não foi produzido um relatório. Estas são as nossas práticas sagradas. Não as documentamos, praticamo-las. Esta é, por isso, uma área em que tenho verificado lacunas. Eu torço para que os financiadores sejam capazes de apoiar centros de recuperação e cura operados pelas comunidades. Porque estes centros podem servir como espaços seguros e culturalmente sensíveis para várias modalidades de cura. É preciso financiar iniciativas que criem espaços seguros para a recuperação de traumas. E estes espaços devem ser concebidos para serem culturalmente relevantes e livres de juízos de valor. Esta é uma área que eu considero importante destacar.
Mas também é importante fornecer recursos e apoio aos indivíduos que lidam com estes traumas, e encorajar actividades de restabelecimento (e enfatizo o restabelecimento, não a resiliência). Actividades que permitam o restabelecimento. Faço esta nota porque procuro ter o cuidado de evitar o termo “resiliência”, um conceito que pode, por vezes, ser enquadrado numa narrativa colonial, uma narrativa que assume que os Povos Indígenas ultrapassaram as adversidades que lhes foram impostas por forças externas. E esta narrativa pode, na verdade, negar a urgência da situação, bem como a autodeterminação das comunidades Indígenas.
E enfatizar excessivamente a resiliência pode, na realidade, ofuscar as lutas e as dificuldades contínuas que as comunidades Indígenas enfrentam, especialmente aquelas que se relacionam com as suas terra e territórios, ou com a justiça ambiental. É por isso que a situação dos Povos Indígenas do Brasil deve ser vista sob o prisma da autodeterminação, da revitalização cultural e dos contínuos esforços destas comunidades para ultrapassar desafios históricos e contemporâneos. Achei que era importante mencionar isto, para responder a esta pergunta.
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ONU quer maior protagonismo de indígenas contra tripla crise planetária | ONU News
CARLA SANTOS
Obrigada, Naomi. Já se debruçou um pouco sobre esta próxima questão: As comunidades Indígenas enfrentam desafios na obtenção de fundos porque os mecanismos coloniais de atribuição de bolsas ainda detêm a maior parte das verbas disponíveis. Os requisitos burocráticos começam logo com a exigência de que as organizações sejam constituídas ao abrigo de quadros jurídicos específicos, e de que estejam a par dos requisitos legais e fiscais. Existe também uma cultura filantrópica que dá prioridade à satisfação e à centralidade do financiador, o que muitas vezes pode levar as organizações a sacrificar as suas prioridades, optando por iniciativas ou formas de funcionamento mais consensuais. Mesmo os requisitos relativos ao enquadramento dos projetos podem constituir obstáculos, porque as estratégias tradicionais, e eficazes, utilizadas pelas comunidades para resolver os seus problemas podem diferir dos moldes convencionais da filantropia. Os Povos Indígenas estão a adaptar-se, particularmente a geração mais jovem, por isso a questão é a seguinte: como é que a filantropia pode mudar estes processos para melhor servir as comunidades Indígenas, respeitando as suas próprias metodologias?
NAOMI LELETO
Nós acreditamos, por exemplo, que quando atribuímos bolsas, vamos encontrar soluções melhores e mais adequadas para questões ambientais e de justiça social se estas forem desenvolvidas por quem é diretamente afetado por estes desafios. Baseamos o nosso trabalho numa teoria da mudança, centrada no poder que os actores locais têm para impulsionar mudanças sistémicas.
Estou a pensar nos Povos Indígenas que marcham para impedir o desenvolvimento petrolífero na Amazónia, nas equipas de cidadãos que se organizam para monitorizar a água industrial, e em muitos, muitos outros exemplos. Penso ainda no ativismo dos jovens em torno de várias injustiças climáticas. Vemos hoje os jovens a reclamarem essa voz.
E também em todas as histórias que temos vindo a discutir, desde os Ogiek aos Maasai em Loliondo… E, na verdade, acho que é preciso reforçar que quando pensamos na abordagem da GGF, e na forma como acompanhou algumas destas comunidades, a redução do peso da burocracia foi sempre crucial. Por exemplo, quando se ajudam comunidades que estão a ser expulsas das suas terras, que estão a ser deslocadas, e lhes é exigido que preencham formulários muito pormenorizados. Temos de ter presente que algumas dessas comunidades nem sequer têm computadores, não têm a possibillidade de se sentarem para preencher formulários. Quando tentamos mudar a mentalidade, mudar as abordagens na forma como são atribuídas bolsas, como é que podemos assegurar uma redução do peso da burocracia nesses processos? Será que podemos receber vídeos, por exemplo, em vez de um relatório escrito? Será que podemos incentivar os jovens, pedindo-lhes que utilizem – agora é o TikTok que está na moda – a tecnologia que é para eles mais intuitiva? É preciso ser flexível e tornar o trabalho e o financiamento um pouco diferentes, se não mesmo divertidos.
Mesmo quando pensamos em bolsas temáticas, é preciso ter presente, como disse no início, que o trabalho comunitário tem nuances, parte do que é local, é complexo. Assim, não podemos assumir que aquilo que funciona na América Latina vai funcionar no Quénia. Não podemos assumir que aquilo que funciona na Ásia vai funcionar na Austrália, com os Povos Indígenas Aborígenes.
A compreensão e aceitação deste facto é absolutamente essencial. É preciso muita flexibilidade e muita inovação. Mas o mais importante é partir sempre da humildade. Porque quando se trabalha tendo a humildade como ponto de partida, é mais fácil compreender as comunidades e as lutas em que participam.
CARLA SANTOS
Obrigada. A Azimuth tem tido uma experiência muito gratificante ao apoiar pequenas organizações de base. A Global Greengrants desenvolve um trabalho muito significativo nesta área há vários anos. Pode contar-nos um episódio ou partilhar uma observação que mostre a importância de financiar diretamente iniciativas Indígenas?
NAOMI LELETO
Se falamos de pequenas bolsas, de trabalhar diretamente com as comunidades, penso que é essa a nossa área de atuação, e aí reside a nossa identidade.
E uma das coisas que realmente fizemos, especialmente no âmbito do nosso modelo descentralizado, foi compreender que as comunidades provêm de áreas geográficas por vezes muito remotas. No mínimo, temos de reconhecer que quando lançamos concursos para a apresentação de propostas, nem todas as organizações terão acesso a essa informação. Há comunidades, por exemplo, que não estão estruturadas, mas que estão a fazer um trabalho fantástico. Há comunidades que não têm acesso a um computador e nem sequer podem saber que há essa oportunidade de financiamento.
Na GGF, o que tentamos fazer é chegar a essas comunidades através dos nossos assessores, que trabalham a nível local, que são especialistas, que estão dentro das comunidades, e que podem pelo menos ter conhecimento de algumas das iniciativas levadas a cabo pelas comunidades. E, nesse sentido, estamos a apoiar e a chegar a comunidades que foram excluídas do panorama do financiamento durante muitos, muitos anos. É aí que apostamos.
Quando se fala de organizações de base, quando ouço falar desse tipo de trabalho, tenho tendência para perguntar: o que é uma organização de base? A que é que se refere esse termo? Porque, durante muitos anos, as oportunidades de financiamento estiveram capturadas. Capturadas por organizações que sabem falar inglês, capturadas por organizações que podem aceder aos concursos e capturadas por organizações que se sentem superiores e cujo único objectivo é obter fundos. Mas quando se vai de facto às bases, percebemos que não está a ser esse o destino dos fundos. As pessoas mais vulneráveis, as pessoas mais afectadas, não estão a receber esse dinheiro.
Por isso enfatizo o quão belo é trabalhar com as comunidades, o quão belo é desenvolver relações com as comunidades, o quão belo é confiar, permitindo-lhes fazerem o que quiserem com os fundos que lhes foram atribuídos. Porque essa é a outra questão, a confiança. Há sempre imensas avaliações. Vemos os financiadores a gastar tanto dinheiro em viagens para visitar comunidades e avaliar os resultados dos projectos. São recursos que podiam ter muito maior utilidade. Há quem gaste 10.000 dólares para ir avaliar um projeto de 3.000 dólares. Penso que é mais do que tempo de nos sentarmos e de questionarmos as abordagens aos processos de financiamento. Será que estamos a ser sérios? Será que estamos a pensar nas intenções que guiam o nosso trabalho?
CARLA SANTOS
Que avanços testemunhou no movimento para Descolonizar a Filantropia? Que frustrações persistem? E que obstáculos são particularmente desafiantes?
NAOMI LELETO
Descolonizar é um bom termo. Eu normalmente prefiro dizer “Indigenizar a Filantropia”. E trata-se de mergulhar de forma crítica na importância das culturas e cosmovisões Indígenas. Quando procuramos descolonizar a filantropia, temos de mergulhar nos processos Indígenas de tomada de decisões, temos de apoiar e trabalhar em grande proximidade com os sistemas de governação tradicionais. Isto não é só uma forma de transformar a filantropia, é também uma forma de restaurar o equilíbrio e a soberania, factores que sustentam mais justiça e equidade para as pessoas e a natureza. E apercebemo-nos de que a liderança Indígena tradicional, que durante muito tempo foi negligenciada, é necessária e é fundamental para conseguir esta transformação.
E tenho assistido a uma mudança, a um reforço dos financiamentos que promovem iniciativas assentes nos modelos de governação tradicional dos Povos Indígenas, centradas na formas de associação e tomada de decisões tradicionais. Mas há muitos desafios, como foi referido. Especialmente no que se refere aos pressupostos que guiam os financiadores. É realmente preciso examinar os nossos pressupostos, no que toca à atribuição de bolsas. Fazê-lo irá melhorar as hipóteses de colaboração, especialmente com os Povos Indígenas. E precisamos de reconhecer que dentro destas comunidades, como em quaisquer outras, existem pontos de vista diferentes, existem diferentes exigências, e não podemos se podem assumir posições unificadas.
Também não devemos assumir que as necessidades dos Povos Indígenas são iguais às nossas próprias necessidades. Ao visitarmos uma comunidade, podemos reparar nas mulheres que percorrem longas distâncias para ir buscar lenha. “O que devo, então, fazer? Devo apoiar estas pessoas instalando um painel solar”. Isto não passa de uma suposição. Quem disse que são essas as necessidades da comunidade? Os financiadores raramente tomam o tempo para cultivar e manter relações. Isso requer confiança, como já referi. Requer humildade, colaboração, alinhamento ao nível das missões, e requer respeito pela comunidade.
O que vejo é a existência de uma série de dinâmicas de poder, e é necessário desmistificar algumas destas abordagens. Porque também temos vindo a notar, como já disse antes, menos CLPI. As comunidades não são envolvidas no desenho dos projetos. Os financiadores chegam e implementam. As comunidades não estiveram presentes quando se começou um projeto, quando se pensou no projeto, mas o projeto é implementado no seio dessas comunidades. Como é que isso pode funcionar? As comunidades não contribuíram para o projeto, nem sequer com ideias. Mas essa ideia é-lhes imposta, porque alguém assume o papel de salvador, capaz de acabar com as suas dificuldades. Isso não vai funcionar.
CARLA SANTOS
A sua experiência enquanto advogada e ativista deu-lhe uma perspetiva única sobre a luta política pelos direitos dos Povos Indígenas. A Naomi participou na elaboração de políticas e de resoluções internacionais, em organismos como o Fórum Permanente para as Questões Indígenas da ONU. Mas tem também muita experiência com abordagens práticas, através do seu trabalho de defesa dos direitos das mulheres à terra, no Quénia. Pode dizer-nos como se complementam estas duas abordagens, e como contribuem para avançar os direitos dos Povos Indígenas?
NAOMI LELETO
Tenho de começar por dizer que as minhas experiências foram fundamentais para o trabalho que desenvolvo hoje, e digo isto com muita humildade. Trabalhei com mulheres na linha da frente. Trabalhei com organizações de base. E penso até no trabalho que desenvolvi a nível nacional, antes de fazer a transição para a filantropia. Na verdade, estava um pouco cética quando comecei a trabalhar em filantropia, devido às experiências que tinha tido até então.
E quando ingressei no mundo da filantropia, apercebi-me de que estou a operar a partir de uma posição de privilégio. E isso significa que devo garantir que o meu trabalho e as minhas abordagens se baseiam na humildade. Porque eu passei do pólo de quem recebe fundos, para o pólo de quem atribui fundos. E para que eu possa realmente fazer este trabalho, tenho de o fazer com muita humildade, tenho de saber compreender e identificar muitas dinâmicas.
E vou contar uma história que me fez questionar o campo da filantropia, muito antes de saber que alguma vez passaria para o lado da atribuição de fundos. Esta história passa-se numa altura em que eu estava a supervisionar um determinado projeto. Foram atribuídos fundos à organização de base com quem eu estava a trabalhar, para que a comunidade construísse um poço. E esta história mostra porque sou cética em relação aos processos de avaliação. Então, o poço foi construído e a comunidade estava satisfeita. O poço ficava num lugar um pouco afastado da comunidade. E quando foi posto em funcionamento, a comunidade definiu regras e regulamentos sobre o seu uso.
De manhã, as mulheres deviam ir buscar água. Talvez entre as 8 e as 11 horas da manhã. Depois, a partir das 11 horas, os animais vêm beber água. A parte da região de que estou a falar é muito quente e muito seca. Este processo é muito sistemático, e há uma razão para isso, porque se os animais vierem demasiado rápido, o poço fica sujo.
Esta financiadora chega e diz que quer encontrar-se com as mulheres às 8 da manhã. E as mulheres tinham de seguir as regras religiosamente, porque a água é muito escassa naquela parte do mundo, e porque seguem um sistema tradicional, que estabelece regras. Esta financiadora precisava, então, de se encontrar com as mulheres da comunidade. E não podia haver uma única reunião. As mulheres e os homens têm sempre reuniões diferentes. Então, a financiadora disse: “Quero reunir-me primeiro com as mulheres e depois com os homens. Porque tenho muito pouco tempo, preciso de me ir embora, tenho outras coisas para fazer.” Achei que isso não fazia nenhum sentido, porque nem sequer quis saber como funcionava a comunidade. Tentei dizer-lhe: “As mulheres não estão disponíveis de manhã, talvez possamos fazer esta reunião à tarde?” Ao que me respondeu, “Está muito calor nesta parte do mundo e acho que não consigo aguentar o calor a essa hora. Por isso, só me posso encontrar com a comunidade de manhã, porque é o único tempo de que disponho, e depois continuo com os meus outros compromissos”.
Partilho esta história que me lembra sempre de como os financiadores podem ser insensíveis. Na verdade, optei por nem sequer comunicar isto aos organizadores, às pessoas que estavam a ajudar a mobilizar a comunidade, porque não queria mudar o modo de funcionamento da comunidade. Por isso, depois de ter escrito e comunicado isto à financiadora, e de ela não ter mostrado compreensão, disse: “Muito bem, acho que, sendo a primeira vez, vamos ter de ver como isto corre”. E quando chegámos ao local, não estava lá ninguém… O ponto de encontro era debaixo de umas árvores. Ninguém apareceu, até à uma da tarde. Durante todo este tempo, ela esteve a reclamar. E relembro que ela não podia ir embora, porque precisava de tirar fotografias, de fazer vídeos, tudo isso.
E quando a comunidade chegou, ela estava irritada e foi insensível. Mas eu tive o privilégio de fazer a tradução, e certifiquei-me de que traduzia… Ela não percebia porque é que estava a falar com muita amargura, mas as comunidades continuavam a sorrir. Enfim, é uma história para outro dia.
Mas o que estou a tentar dizer é que, agora que estou do outro lado, tenho de garantir que trabalhamos para construir relações, que trabalhamos para reforçar a confiança, que temos menos pressupostos, que eu tenho menos pressupostos no meu trabalho, e que respeito e abordo as comunidades do ponto de vista delas, e não do meu ponto de vista. Esta seria, portanto, a minha resposta a essa pergunta.
External Links
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