Connecting the Dots com Kaká Werá

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Crédito: FOLIO Festival
Um dos pioneiros da literatura indígena no Brasil fala-nos sobre o papel fundamental deste movimento na preservação de territórios e cosmovisões ancestrais.
Nos últimos 30 anos, a emergência da literatura indígena contemporânea no Brasil tem surgido como um ato fundamental de re-existência. Se a preservação dos territórios materiais dos povos originários é a face mais visível da luta do movimento indígena no Brasil, é igualmente verdade que essa luta estaria incompleta sem uma defesa dos territórios imateriais – as visões de mundo, símbolos próprios e saberes ancestrais – e na qual a proliferação da literatura indígena ocupa um lugar central.
O nosso convidado de hoje, Kaká Werá, é um dos precursores e vozes mais relevantes deste movimento. Escritor, educador e conferencista, tem dedicado mais de três décadas à valorização e difusão dos saberes tradicionais dos povos originários. Autor de dezasseis livros, incluindo obras premiadas como “A Terra dos Mil Povos” e “Menino-Trovão”, o seu trabalho tem sido fundamental tanto para o fortalecimento das próprias comunidades indígenas como para que a sociedade não-indígena reconheça o valor fundamental da diversidade cultural.
Tivemos o privilégio de conversar com Kaká durante o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, onde apresentou o seu mais recente livro “Tekoá: A Arte do Bem-Viver”, uma obra que sintetiza a filosofia ancestral Tupi Guarani do bem viver. Durante o festival, participámos também numa mesa redonda sobre Configurações de Mundos, explorando o papel das cosmovisões indígenas na imaginação de futuros possíveis. A nossa conversa revela não apenas a sua trajetória literária, mas também uma profunda reflexão sobre como os saberes milenares dos povos originários podem iluminar caminhos para os desafios contemporâneos da humanidade.
Veja a versão em vídeo em baixo, ou faça scroll para ouvir a versão em podcast ou para ler a versão escrita.
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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TRANSCRIÇÃO

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No FOLIO, em Óbidos, Portugal (2024)
LITERATURA INDÍGENA | TERRITÓRIOS IMATERIAIS | RE-EXISTÊNCIA
A literatura indígena no Brasil, enquanto escrita, primeiro ela começou como um ato de re-existência. O que significa isso? No Brasil, nós, desde épocas remotas, a partir da colonização, fomos considerados povos desprovidos de cultura, desprovidos de saber. E essa ideia foi reforçada durante séculos. E de há uns tempos para cá, principalmente a minha geração, e uma geração anterior à minha, percebeu que nós tínhamos que lutar nesse lugar do que eu chamo de território imaterial, tanto quanto recuperar nossos territórios materiais.
Os territórios materiais são importantes para garantir a nossa sobrevivência e a sustentabilidade. Mas os territórios imateriais, que são constituídos de visões de mundo, símbolos próprios, sentidos, crenças, percepções, esses territórios imateriais foram solapados. E tentam nos impor uma visão de mundo, que não é só destruidora para nós mesmos. É uma visão de mundo destruidora para a humanidade. A própria sociedade não-indígena está fazendo um questionamento, com relação aos seus paradigmas.
Então, a literatura indígena, ela entra como uma oportunidade de nos fazermos conhecidos, do ponto de vista desse território de cosmovisões, de filosofias, de saberes, para revelar à sociedade não-indígena percepções que nós nos colocamos como necessárias para haver, inclusive, uma humanidade mais apreciativa, no que se refere às diferenças. Às diferenças culturais.
Existe um viés no paradigma da sociedade não-indígena, de querer homogeneizar tudo. Quer dizer, querer fazer com que toda uma cultura seja única, seja somente de uma forma. Comer a mesma comida, falar a mesma língua, o mundo inteiro viver da mesma maneira. E isso, na verdade, é limitador. Porque isso é antinatural. Tanto a natureza biológica, como a natureza humana, ela é diversa. E é dessa diversidade que se criam experiências ricas, que se cria a verdadeira riqueza.
Então, a literatura indígena, ela entra para oferecer essa diversidade. Também, até, filosófica. Porque não? E para dizer para o mundo que essa ideia de que nós não temos cultura foi uma invenção, uma invenção mal sucedida.
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Então, no Brasil, esse movimento é um movimento que tem pouco mais de 30 anos. Mas atualmente, nós somos mais de 160 escritores indígenas, de 58 etnias. E que, de alguma maneira, ganha uma expressão, pouco a pouco, perante a sociedade. Revelando que, além de ser também uma arte, fazer parte, é uma maneira de promover uma re-existência de nós mesmos.
No Brasil, nos últimos 30 anos, a partir dos anos 80, ou final dos anos 80, quando os primeiros autores passaram a surgir, autores que, hoje, são assim pilares, como Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, que recentemente ocupou a Academia Brasileira de Letras, um espaço da literatura no Brasil, eu, e outros colegas, esses autores pioneiros também, estimularam com que novas gerações desejassem escrever, e se tornassem também escritores.
Então, para começar, para conhecer, eu sugiro os clássicos, vamos dizer assim, os nossos aparentemente clássicos. Como o Daniel Munduruku, o próprio Ailton Krenak, Eliane Potiguara. Mas também, nós temos jovens escritores que ganharam grande relevância, como Cristino Wapichana. Cristino Wapichana é um autor que já veio a Óbidos. Ele é dessa nova geração. Ele foi, por exemplo, um dos autores que ganhou o prêmio Peter Pan de literatura infanto-juvenil, que é um dos prémios mais importantes do mundo. São esses autores que eu sugiro para, assim, começar.
E, no meu caso, da minha autoria, tem alguns livros que são emblemáticos. Um deles, chamado “A Terra dos 1000 Povos”. É um livro que, inclusive, a Universidade de Coimbra, junto com a Universidade de São Paulo, definiram como um dos 200 livros para entender o Brasil.
E o mais recente, o livro que saiu esse ano, chamado “Tekoá: A arte do Bem-Viver”. Eu considero um livro importante. Não somente por ser o mais recente, o livro que está sendo lançado agora. Porque ele tem uma síntese dessa filosofia ancestral, da tradição Tupi Guarani. Eu sugiro começar por esses autores.


Em virtude dessa expansão de autores indígenas, nos últimos 30 anos, no ano passado o Instituto Oceanos – que é um instituto que promove um concurso anual de literatura portuguesa, literatura de língua portuguesa do Brasil, Portugal, países da África – o Instituto Oceanos promoveu um espaço para, primeiramente, mostrar-se a literatura indígena, através de exposições. Que está circulando em vários estados do Brasil, desde o ano passado.
E, no segundo momento, é disponibilizar – vendo que existe já uma diversidade – uma catalogação, a qual o Instituto Oceanos está preparando, e buscando, inclusive, parceiros, para fazer. E é algo, na verdade, bem recente. E onde você pode encontrar? No site do Instituto Oceanos, entrando em contacto com o Instituto Oceanos. Que é a nossa grande, vamos dizer assim, oportunidade nesse momento, dentro da literatura. De desenvolver uma espécie de um Observatório de Literatura Indígena, para disponibilizar para a sociedade toda essa diversidade.
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“Araetá: A Literatura Dos Povos Originários”
BEM-VIVER | TEKOÁ-PORÃ | FILOSOFIA TUPI GUARANI
The philosophy of Living Well deals with certain principles that come from Andean cultures and from southern Brazil, from the Guarani, Aymara, Quechua and A filosofia do Bem-Viver trata de alguns princípios que vêm de culturas andinas e do sul do Brasil, das culturas Guarani, Aymara, Quéchua, Mapuche. São culturas que estão presentes na América há pelo menos 12.000, 20.000 anos. E que, em virtude da desagregação social e ecológica que nós estamos passando, um grave risco da própria destruição da humanidade, nós estamos propagando.
A filosofia do Bem-Viver trata, justamente, de você desenvolver uma outra maneira de se relacionar com aquilo que a gente come, e como a gente vive num determinado lugar. Ela trata de você considerar, por exemplo, a multiculturalidade como algo importante para gerar riqueza. Quando você olha uma floresta, é da diversidade de espécies que se gera uma floresta, não é de uma monocultura. Há esse ponto.
O segundo ponto, é a maneira como você obtém os recursos de um lugar. Não é explorando de um modo indiscriminado. É utilizando o cuidado para extrair o que precisamos para viver, preservando o tempo necessário para os lugares se restabelecerem, se renovarem.
E, por fim, a ideia de pararmos de gerar poluição de ar, parar de envenenar a Terra, parar de poluir as águas, e parar de gerar a guerra. Nesse momento no mundo, nós temos mais de 50 guerras em curso. Isso porque se diz que o mundo é civilizado. Os noticiários às vezes apresentam duas, três guerras que são contundentes. Mas, na verdade, nós temos mais de 50 guerras. E nós estamos no ano, pelo menos aqui nesse momento, de 2024, onde supostamente nós temos inteligência, tecnologia, saberes e educação para desenvolver experiências de convivência. E não aprendemos ainda isso. Aprender a conviver é o nosso desafio.
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SONO E SONHO | EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA | VIDA IMATERIAL
A sociedade não-indígena tem uma compreensão, vamos dizer assim, de sono, por exemplo, dentro de uma lógica mais biológica. E tem uma compreensão do sonho, da dimensão do sonho, também dentro de lógicas neurológicas. Para a sociedade, sono e sonhos são complementos de determinados estados do organismo ou do corpo, para repousar, e recobrar depois a consciência.
Para os povos indígenas, o sono é a preparação para uma travessia. Nós vivemos dentro da nossa dimensão de vida material, praticamente um terço da nossa vida, sonhando. Nós precisamos do sonho para nos rejuvenescer, para nos renovar, isso é uma verdade. Mas para os povos indígenas, esse um terço dessa vida, na verdade, é também uma oportunidade de vivenciar uma experiência consciencional em outros planos, em outras dimensões da vida.
Dormir e sonhar não têm efeitos simplesmente fisiológicos. Dormir e sonhar são portais para que a nossa alma, para que o nosso ser, possa vivenciar experiências complementares à da vida material. Na dimensão do sonho, por exemplo, nós podemos conectar com outros parentes, outros entes, outros seres, dentro dessas outras dimensões. Nós podemos partilhar impressões, e nós podemos, inclusive, aprender coisas.
No Brasil, eu costumo dizer que muitas das coisas que a tradição Tupi se utiliza na sua rotina, na sua vida, desde culinária, alimentação, remédios, ervas, direção de onde ir, para onde ir, onde estar, vem dessa dimensão do sonho.
Existem determinados alimentos que no Brasil são tidos como já alimentos tradicionais, influência dos povos indígenas. Por exemplo, como a mandioca, o guaraná, o milho, que são alimentos ancestrais que foram aprendidos em sonho, o uso dessas raízes ou dessas sementes.
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O sonho é uma oportunidade de expansão de consciência. Na tradição Guarani, que é uma tradição que eu durante muito tempo tive uma convivência profunda, nós ocupamos determinados lugares, se sonhamos que devemos ocupá-los. A tradição do Guarani tem um longo percurso de viagem, de busca, de viver em lugares adequados para a vida. E esses lugares são mostrados em sonho.
Uma outra característica, por exemplo: a tradição Guarani é uma tradição muito espiritualizada. É uma tradição que considera toda a vida como uma experiência do sagrado. E considera importante você reconhecer essa presença do sagrado em cada lugar, e nas coisas. E uma das maneiras de fazer conhecimento é através do canto. É através de, nós chamamos inhaporã, são cantos-poemas. Esses cantos e esses poemas, eles são sonhados. Os versos desses cantos, desde tempos imemoriais, eles são sonhados.
Porque se acredita que nessa dimensão do sonho, nós nos tornamos mais apropriados para conversar com seres que são da natureza. Espírito de árvores, espíritos de animais. Porque nessa dimensão material há uma dificuldade na relação de linguagem entre nós.
Então, há uma vastidão de percepção em relação ao sonho, na tradição indígena de uma maneira geral, que difere muito da consciência de sono e de sonho da sociedade não-indígena. Por exemplo, dormir, passar pelo processo de sono, é profundamente importante, porque é um caminho da renovação da alma e é onde a nossa alma se nutre. Se nós não dormimos direito, nós não pensamos direito, não sentimos direito. No nosso estado de vigília, a nossa percepção, o nosso senso de percepção, diminui muito, nos limita muito. Então, esses temas são temas que nós consideramos importantes serem compreendidos sobre o nosso olhar.
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Kaká Werá vence o Jabuti em ano que celebra suas três décadas de literatura indígena
POVOS INDÍGENAS E PORTUGAL | ESTEREÓTIPOS | PARTILHAR VISÕES DE MUNDO
Na verdade, eu não tenho muita referência de como que os portugueses vêem nem o Brasil, nem os povos indígenas. Eu já vim aqui uma vez, o ano passado, e tive uma recepção, um acolhimento assim bem afetuoso, por parte local, dos portugueses, e na circunstância de uma feira de literatura.
Mas frequentemente, eu escuto dizer que a visão dos portugueses, daqui, não é muito diferente da visão da média dos brasileiros. Que é a ideia de que os povos indígenas, a figura do cidadão indígena, é uma figura estereotipada, baseada em estereótipos, baseada em ideias distorcidas.
Uma delas, uma dessas ideias distorcidas, é de que os povos não têm uma cultura, não têm um saber. E a outra delas, é de que no Brasil se disputam terras que são muito grandes para comunidades pequenas.
Mas eu não sei dizer ao certo se são essas as únicas referências. No entanto, é necessário trazer – e isso eu acho importante, essa abertura em Óbidos, por exemplo – as nossas visões de mundo, as nossas percepções.
E esse convite, não só a mim, como a outros parentes, de poder compartilhar com a sociedade portuguesa em particular sobre as nossas visões de mundo, as nossas preocupações, as nossas questões, isso nos ajuda a nos aproximar, de facto. E nos ajuda a abrir possibilidades de interações mais propositivas.
Connecting the Dots com Kaká Werá

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Crédito: FOLIO Festival
Um dos pioneiros da literatura indígena no Brasil fala-nos sobre o papel fundamental deste movimento na preservação de territórios e cosmovisões ancestrais.
Nos últimos 30 anos, a emergência da literatura indígena contemporânea no Brasil tem surgido como um ato fundamental de re-existência. Se a preservação dos territórios materiais dos povos originários é a face mais visível da luta do movimento indígena no Brasil, é igualmente verdade que essa luta estaria incompleta sem uma defesa dos territórios imateriais – as visões de mundo, símbolos próprios e saberes ancestrais – e na qual a proliferação da literatura indígena ocupa um lugar central.
O nosso convidado de hoje, Kaká Werá, é um dos precursores e vozes mais relevantes deste movimento. Escritor, educador e conferencista, tem dedicado mais de três décadas à valorização e difusão dos saberes tradicionais dos povos originários. Autor de dezasseis livros, incluindo obras premiadas como “A Terra dos Mil Povos” e “Menino-Trovão”, o seu trabalho tem sido fundamental tanto para o fortalecimento das próprias comunidades indígenas como para que a sociedade não-indígena reconheça o valor fundamental da diversidade cultural.
Tivemos o privilégio de conversar com Kaká durante o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, onde apresentou o seu mais recente livro “Tekoá: A Arte do Bem-Viver”, uma obra que sintetiza a filosofia ancestral Tupi Guarani do bem viver. Durante o festival, participámos também numa mesa redonda sobre Configurações de Mundos, explorando o papel das cosmovisões indígenas na imaginação de futuros possíveis. A nossa conversa revela não apenas a sua trajetória literária, mas também uma profunda reflexão sobre como os saberes milenares dos povos originários podem iluminar caminhos para os desafios contemporâneos da humanidade.
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No FOLIO, em Óbidos, Portugal (2024)
LITERATURA INDÍGENA | TERRITÓRIOS IMATERIAIS | RE-EXISTÊNCIA
A literatura indígena no Brasil, enquanto escrita, primeiro ela começou como um ato de re-existência. O que significa isso? No Brasil, nós, desde épocas remotas, a partir da colonização, fomos considerados povos desprovidos de cultura, desprovidos de saber. E essa ideia foi reforçada durante séculos. E de há uns tempos para cá, principalmente a minha geração, e uma geração anterior à minha, percebeu que nós tínhamos que lutar nesse lugar do que eu chamo de território imaterial, tanto quanto recuperar nossos territórios materiais.
Os territórios materiais são importantes para garantir a nossa sobrevivência e a sustentabilidade. Mas os territórios imateriais, que são constituídos de visões de mundo, símbolos próprios, sentidos, crenças, percepções, esses territórios imateriais foram solapados. E tentam nos impor uma visão de mundo, que não é só destruidora para nós mesmos. É uma visão de mundo destruidora para a humanidade. A própria sociedade não-indígena está fazendo um questionamento, com relação aos seus paradigmas.
Então, a literatura indígena, ela entra como uma oportunidade de nos fazermos conhecidos, do ponto de vista desse território de cosmovisões, de filosofias, de saberes, para revelar à sociedade não-indígena percepções que nós nos colocamos como necessárias para haver, inclusive, uma humanidade mais apreciativa, no que se refere às diferenças. Às diferenças culturais.
Existe um viés no paradigma da sociedade não-indígena, de querer homogeneizar tudo. Quer dizer, querer fazer com que toda uma cultura seja única, seja somente de uma forma. Comer a mesma comida, falar a mesma língua, o mundo inteiro viver da mesma maneira. E isso, na verdade, é limitador. Porque isso é antinatural. Tanto a natureza biológica, como a natureza humana, ela é diversa. E é dessa diversidade que se criam experiências ricas, que se cria a verdadeira riqueza.
Então, a literatura indígena, ela entra para oferecer essa diversidade. Também, até, filosófica. Porque não? E para dizer para o mundo que essa ideia de que nós não temos cultura foi uma invenção, uma invenção mal sucedida.
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Então, no Brasil, esse movimento é um movimento que tem pouco mais de 30 anos. Mas atualmente, nós somos mais de 160 escritores indígenas, de 58 etnias. E que, de alguma maneira, ganha uma expressão, pouco a pouco, perante a sociedade. Revelando que, além de ser também uma arte, fazer parte, é uma maneira de promover uma re-existência de nós mesmos.
No Brasil, nos últimos 30 anos, a partir dos anos 80, ou final dos anos 80, quando os primeiros autores passaram a surgir, autores que, hoje, são assim pilares, como Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Ailton Krenak, que recentemente ocupou a Academia Brasileira de Letras, um espaço da literatura no Brasil, eu, e outros colegas, esses autores pioneiros também, estimularam com que novas gerações desejassem escrever, e se tornassem também escritores.
Então, para começar, para conhecer, eu sugiro os clássicos, vamos dizer assim, os nossos aparentemente clássicos. Como o Daniel Munduruku, o próprio Ailton Krenak, Eliane Potiguara. Mas também, nós temos jovens escritores que ganharam grande relevância, como Cristino Wapichana. Cristino Wapichana é um autor que já veio a Óbidos. Ele é dessa nova geração. Ele foi, por exemplo, um dos autores que ganhou o prêmio Peter Pan de literatura infanto-juvenil, que é um dos prémios mais importantes do mundo. São esses autores que eu sugiro para, assim, começar.
E, no meu caso, da minha autoria, tem alguns livros que são emblemáticos. Um deles, chamado “A Terra dos 1000 Povos”. É um livro que, inclusive, a Universidade de Coimbra, junto com a Universidade de São Paulo, definiram como um dos 200 livros para entender o Brasil.
E o mais recente, o livro que saiu esse ano, chamado “Tekoá: A arte do Bem-Viver”. Eu considero um livro importante. Não somente por ser o mais recente, o livro que está sendo lançado agora. Porque ele tem uma síntese dessa filosofia ancestral, da tradição Tupi Guarani. Eu sugiro começar por esses autores.


Em virtude dessa expansão de autores indígenas, nos últimos 30 anos, no ano passado o Instituto Oceanos – que é um instituto que promove um concurso anual de literatura portuguesa, literatura de língua portuguesa do Brasil, Portugal, países da África – o Instituto Oceanos promoveu um espaço para, primeiramente, mostrar-se a literatura indígena, através de exposições. Que está circulando em vários estados do Brasil, desde o ano passado.
E, no segundo momento, é disponibilizar – vendo que existe já uma diversidade – uma catalogação, a qual o Instituto Oceanos está preparando, e buscando, inclusive, parceiros, para fazer. E é algo, na verdade, bem recente. E onde você pode encontrar? No site do Instituto Oceanos, entrando em contacto com o Instituto Oceanos. Que é a nossa grande, vamos dizer assim, oportunidade nesse momento, dentro da literatura. De desenvolver uma espécie de um Observatório de Literatura Indígena, para disponibilizar para a sociedade toda essa diversidade.
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“Araetá: A Literatura Dos Povos Originários”
BEM-VIVER | TEKOÁ-PORÃ | FILOSOFIA TUPI GUARANI
The philosophy of Living Well deals with certain principles that come from Andean cultures and from southern Brazil, from the Guarani, Aymara, Quechua and A filosofia do Bem-Viver trata de alguns princípios que vêm de culturas andinas e do sul do Brasil, das culturas Guarani, Aymara, Quéchua, Mapuche. São culturas que estão presentes na América há pelo menos 12.000, 20.000 anos. E que, em virtude da desagregação social e ecológica que nós estamos passando, um grave risco da própria destruição da humanidade, nós estamos propagando.
A filosofia do Bem-Viver trata, justamente, de você desenvolver uma outra maneira de se relacionar com aquilo que a gente come, e como a gente vive num determinado lugar. Ela trata de você considerar, por exemplo, a multiculturalidade como algo importante para gerar riqueza. Quando você olha uma floresta, é da diversidade de espécies que se gera uma floresta, não é de uma monocultura. Há esse ponto.
O segundo ponto, é a maneira como você obtém os recursos de um lugar. Não é explorando de um modo indiscriminado. É utilizando o cuidado para extrair o que precisamos para viver, preservando o tempo necessário para os lugares se restabelecerem, se renovarem.
E, por fim, a ideia de pararmos de gerar poluição de ar, parar de envenenar a Terra, parar de poluir as águas, e parar de gerar a guerra. Nesse momento no mundo, nós temos mais de 50 guerras em curso. Isso porque se diz que o mundo é civilizado. Os noticiários às vezes apresentam duas, três guerras que são contundentes. Mas, na verdade, nós temos mais de 50 guerras. E nós estamos no ano, pelo menos aqui nesse momento, de 2024, onde supostamente nós temos inteligência, tecnologia, saberes e educação para desenvolver experiências de convivência. E não aprendemos ainda isso. Aprender a conviver é o nosso desafio.
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SONO E SONHO | EXPANSÃO DA CONSCIÊNCIA | VIDA IMATERIAL
A sociedade não-indígena tem uma compreensão, vamos dizer assim, de sono, por exemplo, dentro de uma lógica mais biológica. E tem uma compreensão do sonho, da dimensão do sonho, também dentro de lógicas neurológicas. Para a sociedade, sono e sonhos são complementos de determinados estados do organismo ou do corpo, para repousar, e recobrar depois a consciência.
Para os povos indígenas, o sono é a preparação para uma travessia. Nós vivemos dentro da nossa dimensão de vida material, praticamente um terço da nossa vida, sonhando. Nós precisamos do sonho para nos rejuvenescer, para nos renovar, isso é uma verdade. Mas para os povos indígenas, esse um terço dessa vida, na verdade, é também uma oportunidade de vivenciar uma experiência consciencional em outros planos, em outras dimensões da vida.
Dormir e sonhar não têm efeitos simplesmente fisiológicos. Dormir e sonhar são portais para que a nossa alma, para que o nosso ser, possa vivenciar experiências complementares à da vida material. Na dimensão do sonho, por exemplo, nós podemos conectar com outros parentes, outros entes, outros seres, dentro dessas outras dimensões. Nós podemos partilhar impressões, e nós podemos, inclusive, aprender coisas.
No Brasil, eu costumo dizer que muitas das coisas que a tradição Tupi se utiliza na sua rotina, na sua vida, desde culinária, alimentação, remédios, ervas, direção de onde ir, para onde ir, onde estar, vem dessa dimensão do sonho.
Existem determinados alimentos que no Brasil são tidos como já alimentos tradicionais, influência dos povos indígenas. Por exemplo, como a mandioca, o guaraná, o milho, que são alimentos ancestrais que foram aprendidos em sonho, o uso dessas raízes ou dessas sementes.
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Uma outra característica, por exemplo: a tradição Guarani é uma tradição muito espiritualizada. É uma tradição que considera toda a vida como uma experiência do sagrado. E considera importante você reconhecer essa presença do sagrado em cada lugar, e nas coisas. E uma das maneiras de fazer conhecimento é através do canto. É através de, nós chamamos inhaporã, são cantos-poemas. Esses cantos e esses poemas, eles são sonhados. Os versos desses cantos, desde tempos imemoriais, eles são sonhados.
Porque se acredita que nessa dimensão do sonho, nós nos tornamos mais apropriados para conversar com seres que são da natureza. Espírito de árvores, espíritos de animais. Porque nessa dimensão material há uma dificuldade na relação de linguagem entre nós.
Então, há uma vastidão de percepção em relação ao sonho, na tradição indígena de uma maneira geral, que difere muito da consciência de sono e de sonho da sociedade não-indígena. Por exemplo, dormir, passar pelo processo de sono, é profundamente importante, porque é um caminho da renovação da alma e é onde a nossa alma se nutre. Se nós não dormimos direito, nós não pensamos direito, não sentimos direito. No nosso estado de vigília, a nossa percepção, o nosso senso de percepção, diminui muito, nos limita muito. Então, esses temas são temas que nós consideramos importantes serem compreendidos sobre o nosso olhar.
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POVOS INDÍGENAS E PORTUGAL | ESTEREÓTIPOS | PARTILHAR VISÕES DE MUNDO
Na verdade, eu não tenho muita referência de como que os portugueses vêem nem o Brasil, nem os povos indígenas. Eu já vim aqui uma vez, o ano passado, e tive uma recepção, um acolhimento assim bem afetuoso, por parte local, dos portugueses, e na circunstância de uma feira de literatura.
Mas frequentemente, eu escuto dizer que a visão dos portugueses, daqui, não é muito diferente da visão da média dos brasileiros. Que é a ideia de que os povos indígenas, a figura do cidadão indígena, é uma figura estereotipada, baseada em estereótipos, baseada em ideias distorcidas.
Uma delas, uma dessas ideias distorcidas, é de que os povos não têm uma cultura, não têm um saber. E a outra delas, é de que no Brasil se disputam terras que são muito grandes para comunidades pequenas.
Mas eu não sei dizer ao certo se são essas as únicas referências. No entanto, é necessário trazer – e isso eu acho importante, essa abertura em Óbidos, por exemplo – as nossas visões de mundo, as nossas percepções.
E esse convite, não só a mim, como a outros parentes, de poder compartilhar com a sociedade portuguesa em particular sobre as nossas visões de mundo, as nossas preocupações, as nossas questões, isso nos ajuda a nos aproximar, de facto. E nos ajuda a abrir possibilidades de interações mais propositivas.