Connecting the Dots com Edson Krenak

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Uma discussão profunda sobre direitos indígenas na transição verde, o impacto singular das organizações indígenas, a evolução do movimento indígena no Brasil, e o trabalho do autor, académico e coordenador da Cultural Survival e da SIRGE Coalition.

Nos últimos anos, temos assistido a um ressurgimento do movimento Indígena a nível global. As novas tecnologias têm permitido que a enorme diversidade de Povos Indígenas do mundo ganhe mais visibilidade, e que o faça ancorada na capacidade de construir as suas próprias narrativas sobre o seu passado, presente e futuro – uma mudança tectónica face a uma história que ao longo dos séculos foi definida e mantida pelo Ocidente.

Esta nova visibilidade tem criado pontes de solidariedade entre os Povos Indígenas, unidos em torno dos desafios comuns que enfrentam, mas também das soluções comprovadas que as suas cosmovisões oferecem para um futuro sustentável e mais justo para a humanidade – basta pensar nos estudos que demonstram a relação estreita que existe entre a gestão Indígena dos territórios e a preservação da biodiversidade.

Mas este ressurgimento das causas Indígenas está também a acontecer junto dos não-Indígenas, um pouco por todo o mundo. E a uma visão quase museológica, que cingia os povos Indígenas a um passado pré-colonial e à sua subsequente destruição por esse processo, opõe-se uma consciencialização crescente das sociedades, culturas e línguas Indígenas como vivas, vibrantes e indispensáveis para a sobrevivência do nosso planeta.

Mais do que nunca, torna-se essencial fortalecer este ressurgimento do movimento Indígena, em face das políticas de transição energética e de proteção ambiental definidas internacionalmente. Vivemos um momento crucial para garantir que as bases do nosso futuro comum estejam assentes na defesa dos Direitos Humanos, e muito particularmente nos Direitos dos Povos Indígenas, em cujos territórios se encontram protegidos recursos naturais e índices de biodiversidade indispensáveis ao equilíbrio dos ecossistemas.

No trabalho do Edson Krenak, o nosso convidado de hoje, todas estas questões se entrecruzam, criando um percurso singular de luta pelos direitos dos Povos Indígenas. Edson é Advocacy Coordinator na Cultural Survival, onde também guia o trabalho da organização no Brasil. Está ainda envolvido na coordenação no fundo Indígena Keepers of the Earth, através do qual a Cultural Survival apoia projetos Indígenas de proteção ambiental e soberania territorial.

A par deste trabalho de capacitação e apoio a organizações Indígenas, Edson tem dedicado a sua vida à divulgação das culturas Indígenas (que inclui a produção do seu premiado trabalho como autor), à promoção de uma educação descolonizadora da história, e à criação de alianças que fortaleçam o movimento Indígena, tanto no Brasil como internacionalmente. É de destacar a sua atuação no comité executivo da SIRGE Coalition, que tem desenvolvido um importante trabalho no sentido de garantir que os direitos dos Povos Indígenas são respeitados nas políticas de extração dos minerais essenciais à transição energética. Edson está atualmente a terminar o doutoramento em Antropologia Legal pela Universidade de Viena, na Áustria.

Veja e versão em vídeo em baixo, ou faça scroll para ouvir a versão em podcast ou para ler a versão escrita.


CONNECTING THE DOTS – PODCAST

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VERSÃO ESCRITA


MARIANA MARQUES (AZIMUTH WORLD FOUNDATION)

Edson, muito obrigado por estar hoje aqui connosco. Eu começava por pedir que nos contasse um pouco mais sobre o seu percurso, sobre a comunidade, como aconteceu o seu envolvimento no ativismo pelas causas dos Povos Indígenas, e como é que ele foi evoluindo, do nível local e comunitário para o nível nacional, no Brasil, e para o nível internacional.

EDSON KRENAK

Como muitos Indígenas que vivem na cidade, eu como que busco coletar os cacos da nossa história. Porque a história dos Povos Indígenas em muitos lugares, ela não existe como uma narrativa linear, uma narrativa fácil de ser encontrada. É uma narrativa, é uma história, que você precisa fazer. É um quebra-cabeças, que você pega várias partes e tenta colocar junto. Por causa das ações do tempo colonial, do Estado, que nem sempre é um Estado que realmente faz seu trabalho como protetor dos direitos das minorias, dos direitos dos Povos Indígenas.

Minha família, ela é uma família que se tornou uma família de refugiados. Uma família de pessoas que tiveram que sair dos seus territórios tradicionais, e buscar viver em outros lugares, como muitos Povos Indígenas no Brasil.

O povo Krenak, ele não vive inteiramente no território tradicional, porque parte dele, mais da metade, teve que sair para morar em outras áreas, por causa de empreendimentos minerários, como o da Vale, da enorme companhia multinacional de ferro no Brasil. E depois de muitos conflitos, e violência, e problemas, muitas famílias decidiram ir buscar outro lugar para poder se proteger, e proteger os filhos.

Então, quando eu nasci, nós nascemos já fora do contexto do território tradicional. E para meu pai, quando ele viu aquele monte de filhos que ele tinha já, – nós somos uma família grande, de 8 filhos, eu tenho 4 irmãos e 4 irmãs – ele falou assim: “Olha, é muito difícil ser Indígena no Brasil. É melhor a gente abraçar totalmente a identidade brasileira, e deixar esse negócio de ser Indígena de lado.”


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Mas as visitas à terra tradicional, as histórias familiares, falando com a tia, com o tio, acabaram deixando muitos fios sem ligação na minha história. E eu comecei, quando adolescente, quando jovem, a fazer perguntas sobre os nossos ancestrais Indígenas. E fui reconectando esses fios. Então o meu pai, embora reticente, por causa da violência, por causa dos ataques, por causa da vergonha, por causa de tantos desafios de ser Indígena no Brasil, apesar de tudo isso, a gente acabou voltando aos poucos para as nossas origens.

E aí eu visitei a nossa aldeia Krenak. Se chama Terra Indígena Vanuire, no interior de São Paulo, que é uma Terra de vários Povos Indígenas. É uma Terra reconhecida, demarcada, tudo direitinho, mas muito pequenininha, onde vivem 7 povos Indígenas – um deles é o povo Krenak – que sofreram a diáspora nos anos 40, 50. Há 70, 80 anos atrás. Então, vendo essa realidade, isso, claro, me chamou muito a atenção.

Fui para a universidade e, observando essa realidade, eu comecei a entrar em contato com estudantes Indígenas, líderes Indígenas, ativistas Indígenas, e a procurar saber como é que eu posso fortalecer a identidade novamente, da minha própria família, mas também da minha própria comunidade, do meu próprio Povo.

Então, foi assim que eu comecei aos poucos me envolvendo com o movimento Indígena. E o grande mestre – um dos dois grandes mestres da minha história – é o Daniel Munduruku, escritor Indígena brasileiro. Foi quando ele nos visitou na universidade, onde eu estava estudando, que apresentou o movimento literário Indígena. O movimento de ativismo pela literatura.

Aí, eu participei de uma oficina com ele. Ele viu um texto meu, de uma história que meu pai, meu tio, sempre contavam. Essa história está no meu primeiro livro, que ganhou um prémio. Se chama “O Sonho de Borum”. E quando ele leu essa história, falou assim: “Edson, essa história, ela é linda. Ela precisa de ser compartilhada”. E aí, a gente publicou o livro juntos.

Do arquivo pessoal de Edson Krenak

Entrei em contato com o Ailton Krenak, que também estava muito envolvido com o movimento de literatura Indígena, nesse momento. E foi através de redes, de ativistas, de movimentos – há muitos movimentos Indígenas no Brasil – que a gente foi ampliando o nosso trabalho, o nosso contato, e ampliando a luta, também.

Então, fundamentalmente, a minha história começa no movimento de literatura Indígena, de escritores Indígenas. Unidos nesse amor pela histórias que nos definem, pelas histórias da natureza, pelas histórias que falam das nossas relações profundas e ancestrais com o meio ambiente.

A gente percebeu nesse momento, de encontro com escritores Indígenas que visitavam escolas e universidades no Brasil, que existia muito preconceito, estereótipos, inclusive racismo. Porque as pessoas não conheciam os Indígenas. Muitos lugares, as pessoas pensavam que os Indígenas nem existiam mais, que estavam somente presentes nos livros.

Aí, a gente começou uma caravana de escritores Indígenas. Se chamava Mekukradja, que é um nome que significa “transferindo conhecimento”, ou “compartilhando conhecimento”, em língua Kayapó. E nós começámos a visitar escolas, universidades, institutos culturais, comunidades, para contar histórias Indígenas, e compartilhar as nossas perspectivas, e esclarecer quem são os Povos Indígenas. Nós estamos ainda aqui. Nós sobrevivemos. Sobrevivemos os tempos coloniais, os tempos da ditadura. Nós sobrevivemos o século XX, e estamos aqui no século XXI. E estamos querendo ter relações melhores com a sociedade ao nosso redor.

E aí se tornou nacional, porque as nossas visitas foram em todo o país. Visitando, a demanda cresceu. O número de escritores também cresceram. A gente ia nas aldeias, nas comunidades, e descobria escritores, talentos, artistas, contadores de histórias, lá. E trazia para essa nossa caravana.

E aí teve uma vez que nós sediamos um evento internacional de escritores Indígenas, no Brasil. A gente recebeu escritores Indígenas do Chile, do Canadá, de outros países da América Latina. E a gente percebeu que tinha vários aspectos da nossa história que eram comuns.

Do arquivo pessoal de Edson Krenak

E eu passei a estar curioso a respeito dos Povos Indígenas de outros países, e decidi fazer o meu doutorado fora do Brasil. Fui buscar universidade. Foi muito difícil, porque muitas universidades do Brasil, e fora do Brasil, eles ainda têm uma dificuldade de entender a dinâmica dos conhecimentos Indígenas, essas novas e diferentes maneiras de ver o conhecimento da ciência, as epistemologias Indígenas. Óbvio que nós vemos o conhecimento. E aí, por algum mistério do universo, eu posso dizer assim, eu acabei chegando aqui em Viena, para estudar na Universidade de Viena.

E claro que quando eu estava trabalhando no meu projeto de doutorado, eu precisaria também de conversar com as comunidades. Porque a pesquisa Indígena, ela não é individual. Ela não é um projeto individual do pesquisador. Mas a pesquisa Indígena, a gente até chama uma cerimônia, de construir um conhecimento coletivo e que possa atender as demandas coletivas. E conversando com a minha comunidade, com outras comunidades do Brasil, eu perguntei para eles: “O que é importante eu pesquisar no meu doutorado, para vocês? O que é que seria relevante para a comunidade?”

Porque a gente vê muita pesquisa, uma pesquisa muito colonizadora, aqui. Está sempre presente na história das comunidades Indígenas que o pesquisador vai lá, produz o conhecimento, e só serve para ele, só serve para a universidade, e não serve para a comunidade. E a comunidade nunca vai ouvir falar dessa pesquisa de novo.

Então, eles traçaram, vamos dizer assim, os outlines para a minha pesquisa, para a minha investigação acadêmica. E me falaram: “Olha, o que é importante é o nosso território, nossa Terra. Tem que encontrar maneiras de expressar o que isso significa para a gente. Segundo, os nossos direitos. E como é que a gente entende isso, como é que a gente gostaria que isso fosse entendido fora do Brasil.”

Então, a minha cacica, a Lidiane Krenak, ela disse: “Edson, você precisa lutar onde a gente não pode ir agora lutar. E para fazer essa luta, você precisa defender os nossos direitos culturais, criar uma pesquisa que possa contribuir para isso”.


Do arquivo pessoal de Edson Krenak


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Então, quando eu vim para Viena, eu passei a conhecer outros movimentos Indígenas internacionais. Eu conheci a Cultural Survival num evento aqui, numa conferência. E eles me convidaram para trabalhar. A princípio, como consultor para eles. E depois vimos as necessidades no campo, no Brasil, e fomos trabalhar. No segundo ano, depois de 2 anos trabalhando na Cultural Survival, explodiu essa questão dos minerais de transição, essa questão dos minerais importantes para a tecnologia das baterias, carros elétricos, etc…

E explodiu por dois contextos. Primeiro, as propostas de novas legislações na União Europeia, em lugares como o OECD. Eles começaram a discutir essa legislação: “Como é que a gente vai remanejar os minerais que a gente precisa para essa nova revolução digital, da chamada energia verde?” Esse é o primeiro aspecto, o aspecto legal.

O segundo aspecto foi que eles listaram quantas minas precisariam, onde estavam os minerais, e onde eles iam abrir essas minas. E percebemos que 55% das minas dos minerais necessários iam impactar diretamente os Povos Indígenas. 55%. “Mas puxa, a gente precisa fazer alguma coisa a respeito disso. A gente não pode deixar que os governos e as empresas decidam sozinhos o que vai impactar as comunidades Indígenas”.

E aí, nós começamos essa coalizão de organizações internacionais Indígenas e não-Indígenas, para fazer frente, para garantir que os direitos dos Povos Indígenas nessa transição para uma energia verde possam ser protegidos, também. Para que os Indígenas não fiquem para trás nessa transição. Que eles possam contribuir, e também receberem os benefícios dessa nova energia.

Acabou uma coisa puxando a outra, buscando informação, colocando sempre o foco no que a comunidade precisa. E foi assim que esse trabalho acabou alcançando uma dimensão internacional.


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MARIANA MARQUES

Pode partilhar connosco um pouco mais sobre o crescimento do movimento Indígena no Brasil?

EDSON KRENAK

Eu divido em três momentos, o crescimento do movimento Indígena no Brasil, nas últimas décadas.

O momento antes da Constituição de 1988, que era o momento de luta por direitos, por reconhecimento da existência Indígena. Porque até à Constituição de 1988, nós não éramos reconhecidos,  nem mesmo como seres humanos completos. Éramos vistos como sub-humanos, como menores, como povos em tutela.

Esse primeiro momento, do reconhecimento da existência, ele teve o seu ápice na Constituição de 1988, que reconheceu, não somente a existência dos Povos Indígenas do Brasil, mas o direito deles de viverem como eles querem. O reconhecimento da soberania desses Povos sobre suas terras, os recursos, a língua, a cultura, seus modos de vida. Não é uma Constituição que foi dada pelo governo brasileiro, mas foi conquistada, exigiu muita luta.

Depois, a segunda fase, foi uma fase de luta por demarcação de territórios. Já é contemplada na Constituição de ’88. A gente precisava de ter esses mapas reconhecidos nos documentos, na legislação, nas políticas públicas do Brasil. Então, teve esse momento muito importante. Que, na verdade, ele não acabou. Mas só para deixar bem claro, que até à primeira década dessa segunda fase, a demarcação de terra era para a proteção das culturas Indígenas.

Só que com o Rio ’92, com a voz do saudoso, por exemplo, Paulinho Paiakan, que foi um líder Indígena muito importante, foi um dos meus tutores espirituais e mestres no início… Infelizmente, o COVID-19 acabou ceifando a vida dele. Nesse momento, da Eco ’92 do Brasil, os Povos Indígenas apresentaram que a demarcação de Terras Indígenas tinha uma relação profunda com a proteção do meio ambiente. Então, essa terceira fase, ela começa como os Povos Indígenas como os guardiães da biodiversidade.

Hoje, o movimento Indígena no Brasil carrega a história de reconhecimento das nossas existências. Carrega a luta pela terra, pelos territórios tradicionais. E está trazendo agora, com toda a força, essa mensagem, que quando o governo demarca Terra Indígena, ele está protegendo o meio ambiente.


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Nós começámos a compartilhar uns com os outros. Nós temos, no nível local, regional, nacional, e até Internacional, reuniões Indígenas, assembleias Indígenas. Criámos muitas organizações. Organizações regionais, como a APOINME, que é a Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, a Associação dos Povos Indígenas da Conca Amazônica, a Associação dos Povos Indígenas do Pantanal, do Cerrado, de cada bioma.

Então, esse movimento, ele vem com muita força, de baixo para cima. E ele assume um aspecto nacional. Não somente organizações locais e regionais, lutando pelos seus direitos. Quando a gente percebe que a mudança de governos – de esquerda, de direita, de centro, não importa – não estava resolvendo nada para os Povos Indígenas: “Espera aí, os governos estão resolvendo o problema da fome, o problema de modernização, o problema de industrialização, de educação deles. Mas as nossas demandas não estão sendo atendidas”.

E o pior de tudo, elas estão sendo, na verdade, atacadas, por novos conglomerados políticos. Você deve conhecer o que se chama no Brasil “a bancada dos 3 B”. Bíblia, bala e boi. Que são fundamentalistas cristãos. Não vou dizer que são todos os cristãos, porque temos cristãos que são aliados. O “boi”, que são o pessoal do agrobusiness, da indústria do agro. E também do pessoal da “bala”, o pessoal dos militares. O pessoal que tem uma força política muito grande no Brasil.

Então, eles se aliaram e propuseram interpretações à Constituição de ’88, – que não é somente imoral, mas até mesmo já declarada pela Suprema Corte como inconstitucional – o chamado Marco Temporal. Que reconhece a existência dos Povos Indígenas, somente se eles estavam, durante a Constituição de ’88, vivendo nos seus próprios territórios. É uma tentativa de apagamento da nossa história. Uma história de remoção forçada, de violência, de esbrulho das nossas terras, de invasão.


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É uma interpretação muito perigosa, que ainda está tramitando lá. Ela transfere para o setor privado o direito à terra tradicional. Então, não são as comunidades tradicionais que têm esse direito, mas o setor privado. O setor privado é responsável 100% pela desflorestação, mineração, queimas e uma série de outros problemas, de impactos ambientais seríssimos no Brasil. E que impacta também a comunidade aqui, na Europa.

Se você traça a cadeia de produtos que são produzidos no Brasil, e são vendidos aqui, na Europa, você vê: agrotóxicos que são proibidos aqui, são usados lá, para vender alimento aqui. Alimento, e produtos minerais, e outras matérias primas que são produzidas lá, que são produzidos em terras desflorestadas, em terras destruídas, em florestas destruídas, queimadas, rios contaminados, são vendidos na Europa.

Então, a gente foi nesse movimento, da base para cima. No sentido de que “cima” é quando a gente vai fazer defesa dos nossos direitos na corte nacional, na corte internacional, no governo federal, na câmara. E a gente vê uma participação política enorme dos Povos Indígenas.

Muitos percebendo que não adianta só ir na porta da corte. A gente precisa ser parte da corte. Não adianta convencer políticos. A gente tem que ser político, também. Não adianta a gente tentar fazer um lobby no Ministério. A gente precisa ter o nosso Ministério, também. Então, esse movimento alcançou essa proporção. E hoje, no Brasil, apesar de todos os aspectos limitantes, nós somos talvez o único país do mundo que tem um Ministério de Estado para os Povos Indígenas, liderado por uma líder Indígena, que é a Sônia Guajajara.


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MARIANA MARQUES

As tecnologias têm contribuído para que os jovens das diferentes comunidades Indígenas possam estar neste processo da luta política pelos direitos dos Povos Indígenas? E como é que a arte Indígena, incluindo a literatura, ajudam no fortalecimento do movimento Indígena no Brasil?

EDSON KRENAK

A gente costuma dizer que o coração da comunidade Indígena, do povo Indígena, é o território e a língua. A língua, como todas as línguas do mundo, ela traz em si a história. Mas a língua também é uma forma de tecnologia, tecnologia de comunicação. E os muitos dos nossos povos, eles têm várias tecnologias para se comunicar uns com os outros. E também tecnologias relacionadas com a comida, tecnologias relacionadas com o bem viver, que é esse estilo de vida que não prejudica o meio ambiente.

E a gente percebeu que para falar com o homem moderno, com o homem de hoje, para falar com as comunidades de hoje, para falar com a comunidade não-Indígena, é importante usar outras tecnologias também. Muita gente pensa que quando Povos Indígenas usam tecnologias electrónicas, por exemplo, eles estão deixando de ser Indígenas. Mas isso é uma ignorância. Não é porque uma pessoa usa uma roupa ou fala uma lingua Indígena que essa pessoa vai ser Indígena. Da mesma forma, o contrário. Então, nós usamos as tecnologias para o bem comum da comunidade, e para também fortalecer a nossa luta, fazer com que o outro nos compreenda.

Porque desde tempos imemoriais, nós temos, por exemplo, os xamãs ou os pajés, como chamamos no Brasil. Eles faziam várias viagens diplomáticas, aprendiam outras línguas. Muitas comunidades sempre falaram 4, 5 outros idiomas. Era uma forma de aprender outras tecnologias, outras inovações, outras ideias. E também de evitar a guerra, ou de criar novas formas de relações na floresta.

Então, a língua é muito importante. As tecnologias, elas têm um papel fundamental, de ampliar a nossa voz. Porque agora nós não precisamos mais da tecnologia do papel, do livro, que o homem branco sempre usou para publicar a nosso respeito. Hoje, nós podemos publicar livros a nosso respeito. Hoje, nós podemos usar tecnologias a nosso respeito. Nós podemos estar aqui, junto com você, usando essa tecnologia para ampliar a nossa voz, fortalecer o nosso trabalho.

O desafio dos jovens, hoje, é abraçar essas tecnologias, sem abandonar o conhecimento tradicional, sem abandonar as comunidades.


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MARIANA MARQUES

Depois da enorme violência e impunidade que marcaram a governação de Jair Bolsonaro, a eleição do Lula foi vista como uma fonte de esperança na luta pela defesa dos direitos dos Povos Indígenas no Brasil.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a liderança Indígena da Funai foram indiscutivelmente passos positivos, mas continuamos a assistir a inúmeras situações que negam esta narrativa de melhoramento. Como é que caracteriza o momento presente que atravessam as comunidades Indígenas no Brasil?

EDSON KRENAK

É difícil fazê-lo. É uma pergunta complexa e muito importante. A gente precisa respondê-la quase todos os dias.

Porque se você lê a nossa legislação, e como o Brasil está implementando, ou está incorporando, mecanismos internacionais de proteção dos Povos Indígenas e outras comunidades tradicionais, é muito bonito. Mas aí, a gente percebe que a lei, a justiça, tem um limite. E o limite dela é o limite político. E é por isso que não adianta ter leis fortes, se a vontade política não é forte.

Então, o grande desafio do Ministério dos Povos Indígenas do Brasil é convencer a vontade política do Brasil. É conscientizar essa vontade política – o grande setor da comunidade brasileira que votou, e aprovou, e apoiou, e ainda apoia Bolsonaro – a respeito das nossas demandas, a respeito das nossas preocupações.

Os 4 anos de Bolsonaro, eles não vêm sozinhos. Antes do Bolsonaro – 2, 3 anos antes – a Dilma Rousseff tinha sofrido o impeachment. E nós tivemos um governo de transição do Michel Temer, que preparou o caminho para o Bolsonaro. O Brasil foi em 2, 3 anos, de campeão do meio ambiente, para um dos piores números de proteção do meio ambiente no mundo, durante o governo do Temer e do Bolsonaro. Eles desmantelaram todas essas estruturas de proteção do meio ambiente e dos Povos Indígenas.


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E hoje, o governo Lula, ele começou uma trajetória que, segundo ele, segundo o governo, é de primeiro refazer essas estruturas, para que realmente possam fazer o seu trabalho. Nossa crítica é que está muito devagar. O objetivo número um do Presidente da República, segundo a Constituição do Brasil, é demarcar Terras Indígenas. E agora, mais de 2 anos depois do governo, ele demarcou somente 6. E tem 14, com todos os critérios para a demarcação de Terras Indígenas já preenchidos, já completos. Estão lá na mesa dele, esperando só para ele assinar, e ele não está assinando. Ninguém sabe porquê.

O Ministério não tem ainda força política para forçar o Presidente, pressionar o Presidente para fazer isso. Além disso, o Ministério tem outro desafio, que é orçamento. Então, esse é o problema de muitos políticos, e do Lula também. É mais bonita a fotografia, do que o trabalho mesmo a ser feito. Ele ficou muito bonito na fotografia com os Povos Indígenas. O mundo inteiro aplaudiu. Mas na hora de realmente criar um Ministério que tenha poder de decisão, e tenha poder de operação, está ainda devendo para os Povos Indígenas.


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Por exemplo, o povo Ianomâmi, que vive numa área que é maior que o país de Portugal. Eles são mais ou menos 30.000 pessoas. Eles vivem protegendo essa floresta enorme, cheia de vida, de biodiversidade.

E eles sofreram, durante o governo Bolsonaro, uma invasão de 20.000 grileiros, mineradores, garimpeiros ilegais. Imagina, uma população de 30.000 tem que enfrentar 20.000 garimpeiros. E eles vêm trazendo aviões pequenos, monomotores. Eles vêm construindo pistas de pouso ilegais. Eles vêm trazendo droga, vêm trazendo prostituição, vêm trazendo armas, vêm trazendo doenças, que os povos daí não conhecem.

Então, em muitas comunidades, você vai ver lá, tem histórias horríveis. Tão horríveis. De estupro, de violência contra mulheres e crianças Indígenas. Eles estão numa mata do tamanho de Portugal, e é muito difícil tirar os invasores de lá. Uma grande parte já saiu. Mas o governo precisa de recursos, para manter a segurança.

E o povo Guarani, no centro-oeste do Brasil, eles estão cercados por essa agricultura industrial, que não quer ceder 1 milímetro, para que eles possam viver. E que é responsável por uma série de crimes ambientais, crimes contra a pessoa Indígena, contra o patrimônio Indígena. Então, para resolver esse problema, o Ministério dos Povos Indígenas precisa de apoio da população do Brasil. Precisa de mais força política e de recursos. E é muito difícil.

A gente nunca teve um Ministério. A gente nunca teve uma presença política tão forte como agora, em 500 anos de história. E nós só temos 2 anos de Ministério. Então, muitos que escrevem sobre isso, e até eu mesmo, a gente precisa ser um pouco paciente. São somente 2 anos de Ministério, em 500 anos de devastação, 500 anos de violência.

Você usou uma palavra, “esperança”. Uma palavra que é muito nova, para os Povos Indígenas. Muitos de nós desconhecemos essa palavra, “esperança”. Porque nós não precisávamos dela. Hoje, a gente precisa dessa palavra, porque a gente vive em contextos de violência. A nossa esperança, ela vai em direção ao passado. A gente quer voltar a como nós estávamos antes, em harmonia com o meio ambiente, desenvolvendo nossas vidas, nossas maneiras de ser, de produzir, de viver. Porque aquilo trazia paz para a gente. Então, o que a gente quer é paz, é segurança. Como nós vivíamos antes.

É uma posição um pouco ambivalente. Por um lado, a gente precisa pressionar os políticos. E por outro lado, a gente precisa usar bem os benefícios dessa visibilidade que a gente nunca teve antes.


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MARIANA MARQUES

Enquanto membro da Cultural Survival, tem tido a oportunidade de acompanhar de muito perto o trabalho extraordinário que organizações comunitárias Indígenas fazem diariamente para proteger os seus territórios e o ambiente.

O que é que torna únicos os projetos liderados pelas comunidades Indígenas? E porque é que é tão fulcral garantir que há recursos e fundos, como o Keepers of the Earth, destinados a apoiar exclusivamente este tipo de projetos e organizações de base?

EDSON KRENAK

O trabalho das comunidades Indígenas, ele tem vários aspectos que tornam esses projetos importantíssimos.

Primeiro, é um exercício da autodeterminação, da auto-governança. É um exercício em full, de todos os seus direitos. Direitos de viver independentes, em liberdade, vivendo como eles querem.

E, segundo, esses projetos, eles fortalecem comunidades que estavam em extinção, vulneráveis. Que estavam sob a ameaça de genocídio, de ecocídio. É um projeto de, não vou chamar de ressurreição, mas de realmente rejuvenescimento dessas comunidades. É um exemplo para o mundo, de como comunidades tão vulneráveis têm capacidade de resistência, de resiliência, de desenvolver esses projetos.

E o terceiro ponto, ou razão, é porque nós estamos vivendo uma crise climática sem precedentes. E nós já estamos no ponto de dizer: “Já é tarde demais para prevenir”. Se você lê os jornais, cada semana tem um desastre relacionado com a mudança climática, com o aquecimento global, acontecendo no mundo. Isso mostra uma crise enorme. E a crise é causada por essa maneira extrativista, destruidora, como a gente desenvolve a nossa vida no planeta.


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E os projetos das comunidades Indígenas, eles têm uma mensagem. A mensagem é: “Veja, é possível desenvolver formas de vida que protejam o planeta, e que protejam a economia local, que protejam as espécies mais vulneráveis, e que podem trazer vida, paz, segurança e alegria para as comunidades.” Porque o futuro é comunitário. O futuro é ancestral, como a gente diz. São as formas tradicionais de vida comunitária que vão realmente salvar o planeta. Se é que é possível, nesse momento, salvar o planeta. Ou salvar a humanidade.

Porque, na verdade, como o Ailton Krenak gosta de dizer, quem está sob ameaça é a humanidade, com a mudança climática. O planeta vai continuar. E ele vai ter todas essas mudanças, vai se adaptar, vai mudar, vai se transformar. Mas será que nós somos capazes de nos adaptar e de nos transformar tão rapidamente? A gente está vendo que nós não somos capazes. Com todos esses desastres acontecendo, não somos. Então, os projetos de comunidades Indígenas, eles são muito ricos, porque eles trazem soluções locais e globais.


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MARIANA MARQUES

Há uma importante parte do seu trabalho que passa por dar visibilidade internacional aos Povos Indígenas, e por criar alianças internacionais que fortaleçam este movimento.

Pode dizer-se que há cada vez mais pessoas interessadas na luta dos Povos Indígenas, e mais aliados, por exemplo na Europa? Haverá um reconhecimento cada vez mais profundo sobre o papel que o colonialismo teve e continua a ter nas vidas das comunidades Indígenas?

EDSON KRENAK

Um aspecto do colonialismo foi a criação de leis, de políticas públicas, de legislação, que pudesse justificar suas ações. Então, o que nós temos visto na União Europeia, por exemplo, e nos blocos de países no nível geopolítico, eles criam muitos mecanismos internacionais, leis internacionais. E parte do nosso trabalho é observar essas leis, criticar essas leis, e tentar convencer os nossos aliados, e os políticos aqui da Europa, a transformar essas leis.

Eu vou te dar um exemplo bem concreto, que é essa nova diretiva da União Europeia para a sustentabilidade e negócios, que cuida da questão da cadeia de suprimentos, da cadeia de matérias-primas. Nós lutámos muito para que eles colocassem mecanismos mais fortes de proteção do meio ambiente, de proteção para os Povos Indígenas. Por exemplo, forçando as empresas que fazem negócios fora da Europa a respeitar o direito das comunidades Indígenas à Consulta Livre, Prévia e Informada.

Porque essas consultas são um mecanismo criado pela legislação Internacional. Os Povos Indígenas lutaram muito para ter isso, para que as empresas e os estados consultem as comunidades, antes de estabelecer qualquer projeto em suas terras, em seus territórios. Houve muita luta, muito lobby, muita discussão na União Europeia, no Conselho Europeu, para que essa consulta não entrasse no texto da legislação. Ela é mencionada. Já é um avanço? É um avanço. Mas a gente gostaria de o ter visto nesse texto da diretiva, e também no chamado Raw Materials Act, essa nova legislação, para que fossem respeitados e criados mecanismos mais fortes para proteger os Povos Indígenas.


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Então, um trabalho que a gente faz é tentar convencer, buscar aliados aqui na Europa. Para a gente fortalecer o nosso trabalho de advocacia junto a esses órgãos nacionais e internacionais, aqui na Europa. Mas também ir de encontro às grandes empresas – por exemplo, de carros, fábricas de carros que compram os minérios; A rede de supermercados que compram as frutas; As empresas farmacêuticas que compram os suprimentos que vêm do Brasil, que vêm das comunidades Indígenas, dos territórios Indígenas – para que eles possam ter uma due dilligence.

Temos algumas vitórias. Pequenas, mas importantes. Porque como que coloca o nosso pé na porta, e abre aquela fresta de esperança, de luz. Isso é importante. Eu tenho, assim, colecionado algumas experiências positivas, otimistas, a respeito de alianças aqui na Europa.

Vemos que muitas organizações, e grande parte da sociedade civil, entende que a luta Indígena é a luta deles também. Que a luta Indígena é a luta por uma humanidade que vive no mesmo barco, que navega no mesmo mar. E qualquer coisa que aconteça com esse barco, e com esse mar, vai impactar todo o mundo.


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MARIANA MARQUES

Como é que se consegue passar a mensagem sobre os desafios comuns que as comunidades Indígenas enfrentam, mantendo ao mesmo tempo muito presente a enorme heterogeneidade e pluralidade que existe entre os diferentes Povos Indígenas do Brasil, e do mundo?

EDSON KRENAK

É muito difícil. Tem hora que eu me faço essa pergunta, também. Mas é como numa família grande. Você tem muitas diferenças, mas a gente sempre pensa assim: “Aquilo que nos une é maior e mais importante do que aquilo que nos separa”. Embora essas separações não sejam todas negativas. Tem muitas diferenças que são muito positivas. Mas o que nos une é esse amor pela Mãe Terra. O que nos une é esse amor pelo respeito ao que é humano, pelo respeito às espécies, pelo respeito à biodiversidade. Isso nos une a todos, a todos os Povos Indígenas.

Tem alguns setores da sociedade mundial para quem, infelizmente, o meio ambiente e a biodiversidade não são importantes. As grandes empresas de extrativismo, por exemplo. Mas os Povos Indígenas, embora falem línguas diferentes, eles têm aprendido a usar a mesma linguagem, quando é a respeito de defender os nossos direitos.

Até mesmo a definição de “Povos Indígenas”. Ainda muitas comunidades não gostam desse termo. Mas eles entendem que a denominação “Povos Indígenas” é uma denominação de luta política, de contexto de interação, de relações de poder com o Estado, com as empresas, com as grandes corporações. Então, nesse contexto, a gente entende.


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MARIANA MARQUES

Sabemos que os minerais necessários à transição energética se localizam de forma muito significativa em territórios Indígenas. Um tema que a SIRGE Coalition, na qual o Edson integra o comité executivo, tem trabalhado de uma forma muito significativa.

Sabemos, também, que as políticas de proteção ambiental, como o “30×30”, podem levar à expulsão forçada de comunidades Indígenas dos seus territórios, em nome de uma ideia de conservação que exclui a presença de seres humanos nessas áreas protegidas.

quão crucial é trazer a realidade dos Povos Indígenas para os debates internacionais sobre o clima e a transição energética, para garantir que este processo seja justo, assente na defesa dos direitos humanos, e imune às piores instâncias de greenwashing?

EDSON KRENAK

A SIRGE Coalition tem uma estratégia muito forte, no sentido de atuar em áreas diferentes. A gente tem membros que atuam diretamente com mineradoras. Outros, diretamente com bancos, com investidores. Outros que atuam diretamente, como a Cultural Survival, com comunidades Indígenas. Organizações que focam bastante o trabalho na questão do debate a respeito do clima.

O mais importante para a gente é levar a demanda e a necessidade, a história Indígena, a esses lugares. Quando a gente mostra o que está acontecendo no território Indígena, isso se torna a nossa arma mais poderosa.

Vou te dar um exemplo. Uma empresa grande veio até nós, em março, e mostrou como as suas políticas de meio ambiente, de sustentabilidade, seguiam tudo direitinho. “OK. Vocês, em relação às outras empresas, em relação ao governo, em relação à legislação, vocês estão bem. Vamos conversar com as comunidades que estão perto dos seus empreendimentos”. E quando a gente conversa com as comunidades, a história é totalmente diferente.

As comunidades não são consultadas, como está acontecendo agora mesmo, no Brasil, em relação ao lítio. As comunidades não são consultadas. Nos relatórios de impacto ambiental que a mineradora vendeu – “vendeu” no sentido de “compartilhou” – com os investidores, não havia grandes impactos ambientais. No território, a comunidade me mostrou: “Olha, há 5 anos atrás, a gente tinha um rio aqui, um riacho, aqui. Agora, já não tem mais riacho. Está seco”. Ou: “Edson, as crianças andavam aqui, brincavam nesse território, nessa rua, tranquilamente. Hoje, elas não podem fazer isso mais, porque existe um ataque todos os dias, de morcegos. Os morcegos estão incomodados, stressados, por causa da mineradora”.


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O greenwashing não vai ser identificado por uma empresa de auditoria. Ele não vai ser identificado por uma certificação, que hoje está se multiplicando, por causa desses minerais de transição. Quase cada semana a gente recebe uma notícia de que tem uma nova certificação, uma nova estandardização. Somente as comunidades locais, as comunidades Indígenas podem fazê-lo. As comunidades Indígenas têm dados, inúmeros dados.

E não somente dados, mas também soluções. Porque lugares em que elas conseguiram vitória, mesmo que seja uma vitória simples, pequena, elas têm dado conta de proteger aquilo que protege a vida. Essa é a maneira como as comunidades Indígenas têm lutado contra isso.

E eu não preciso dizer que é uma luta quase que injusta. Porque as comunidades, além de serem as maiores impactadas pela mudança climática, são as que têm menos benefícios da transição, do desenvolvimento. Elas não têm quase fundos nenhuns. Quase não existem mecanismos financeiros, ou de mitigação de impacto da crise climática. Então, as comunidades Indígenas quase fazem milagres.

Porque não existe seguro contra desastre ambiental nas suas comunidades, mas existe o seguro milionário para uma mineradora. Não existe um investidor poderoso nos projetos de meio ambiente da comunidade, mas existem bancos nacionais e internacionais investindo em mineradoras. Então, essa é a nossa luta. E é por isso que eu aprecio o trabalho que a Azimuth está fazendo, de dar a voz a essa questão, de fazer essas perguntas tão importantes, e de compartilhar aqui o que está acontecendo, e como estão acontecendo essas questões.


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MARIANA MARQUES

Obrigada pelas palavras, Edson.

Estava a pensar nos nossos ouvintes que estejam, por exemplo, na Europa, e que podem estar a ganhar cada vez mais acesso a vozes Indígenas, e a ficaram mais sensibilizados para a proteção dos direitos dos Povos Indígenas.

Porém, podem ainda perguntar-se: “Mas, afinal, aqui tão longe, o que é que eu posso fazer”? Quais são as melhores formas de ser hoje um aliado dos Povos Indígenas?

EDSON KRENAK

Minha melhor resposta seria: “Vem passar um tempo em nossas comunidades, e aprender com a gente, e lutar connosco, lá”. Mas eu sei que é impossível, porque as comunidades são pequenas, são vulneráveis, têm vários desafios.

Então, a melhor forma seria, primeiro, se informar a respeito do que as comunidades Indígenas estão fazendo. Se informar a respeito das organizações Indígenas. Se informar a respeito das operações e atividades europeias que impactam as comunidades Indígenas. Apoiar projetos políticos e sociais que apoiam essas comunidades políticas.

E, claro, convidar Indígenas para vir aqui conversar com vocês. Nós temos, não somente no Brasil, mas no mundo inteiro, Indígenas, líderes Indígenas, mulheres Indígenas, jovens Indígenas maravilhosos, que estão prontos para compartilhar, ensinar, e trabalhar junto e colaborar. Então, a gente precisa de mais colaboração.


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Connecting the Dots com Edson Krenak

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Uma discussão profunda sobre direitos indígenas na transição verde, o impacto singular das organizações indígenas, a evolução do movimento indígena no Brasil, e o trabalho do autor, académico e coordenador da Cultural Survival e da SIRGE Coalition.

Nos últimos anos, temos assistido a um ressurgimento do movimento Indígena a nível global. As novas tecnologias têm permitido que a enorme diversidade de Povos Indígenas do mundo ganhe mais visibilidade, e que o faça ancorada na capacidade de construir as suas próprias narrativas sobre o seu passado, presente e futuro – uma mudança tectónica face a uma história que ao longo dos séculos foi definida e mantida pelo Ocidente.

Esta nova visibilidade tem criado pontes de solidariedade entre os Povos Indígenas, unidos em torno dos desafios comuns que enfrentam, mas também das soluções comprovadas que as suas cosmovisões oferecem para um futuro sustentável e mais justo para a humanidade – basta pensar nos estudos que demonstram a relação estreita que existe entre a gestão Indígena dos territórios e a preservação da biodiversidade.

Mas este ressurgimento das causas Indígenas está também a acontecer junto dos não-Indígenas, um pouco por todo o mundo. E a uma visão quase museológica, que cingia os povos Indígenas a um passado pré-colonial e à sua subsequente destruição por esse processo, opõe-se uma consciencialização crescente das sociedades, culturas e línguas Indígenas como vivas, vibrantes e indispensáveis para a sobrevivência do nosso planeta.

Mais do que nunca, torna-se essencial fortalecer este ressurgimento do movimento Indígena, em face das políticas de transição energética e de proteção ambiental definidas internacionalmente. Vivemos um momento crucial para garantir que as bases do nosso futuro comum estejam assentes na defesa dos Direitos Humanos, e muito particularmente nos Direitos dos Povos Indígenas, em cujos territórios se encontram protegidos recursos naturais e índices de biodiversidade indispensáveis ao equilíbrio dos ecossistemas.

No trabalho do Edson Krenak, o nosso convidado de hoje, todas estas questões se entrecruzam, criando um percurso singular de luta pelos direitos dos Povos Indígenas. Edson é Advocacy Coordinator na Cultural Survival, onde também guia o trabalho da organização no Brasil. Está ainda envolvido na coordenação no fundo Indígena Keepers of the Earth, através do qual a Cultural Survival apoia projetos Indígenas de proteção ambiental e soberania territorial.

A par deste trabalho de capacitação e apoio a organizações Indígenas, Edson tem dedicado a sua vida à divulgação das culturas Indígenas (que inclui a produção do seu premiado trabalho como autor), à promoção de uma educação descolonizadora da história, e à criação de alianças que fortaleçam o movimento Indígena, tanto no Brasil como internacionalmente. É de destacar a sua atuação no comité executivo da SIRGE Coalition, que tem desenvolvido um importante trabalho no sentido de garantir que os direitos dos Povos Indígenas são respeitados nas políticas de extração dos minerais essenciais à transição energética. Edson está atualmente a terminar o doutoramento em Antropologia Legal pela Universidade de Viena, na Áustria.

Veja e versão em vídeo em baixo, ou faça scroll para ouvir a versão em podcast ou para ler a versão escrita.


CONNECTING THE DOTS – PODCAST

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VERSÃO ESCRITA


MARIANA MARQUES (AZIMUTH WORLD FOUNDATION)

Edson, muito obrigado por estar hoje aqui connosco. Eu começava por pedir que nos contasse um pouco mais sobre o seu percurso, sobre a comunidade, como aconteceu o seu envolvimento no ativismo pelas causas dos Povos Indígenas, e como é que ele foi evoluindo, do nível local e comunitário para o nível nacional, no Brasil, e para o nível internacional.

EDSON KRENAK

Como muitos Indígenas que vivem na cidade, eu como que busco coletar os cacos da nossa história. Porque a história dos Povos Indígenas em muitos lugares, ela não existe como uma narrativa linear, uma narrativa fácil de ser encontrada. É uma narrativa, é uma história, que você precisa fazer. É um quebra-cabeças, que você pega várias partes e tenta colocar junto. Por causa das ações do tempo colonial, do Estado, que nem sempre é um Estado que realmente faz seu trabalho como protetor dos direitos das minorias, dos direitos dos Povos Indígenas.

Minha família, ela é uma família que se tornou uma família de refugiados. Uma família de pessoas que tiveram que sair dos seus territórios tradicionais, e buscar viver em outros lugares, como muitos Povos Indígenas no Brasil.

O povo Krenak, ele não vive inteiramente no território tradicional, porque parte dele, mais da metade, teve que sair para morar em outras áreas, por causa de empreendimentos minerários, como o da Vale, da enorme companhia multinacional de ferro no Brasil. E depois de muitos conflitos, e violência, e problemas, muitas famílias decidiram ir buscar outro lugar para poder se proteger, e proteger os filhos.

Então, quando eu nasci, nós nascemos já fora do contexto do território tradicional. E para meu pai, quando ele viu aquele monte de filhos que ele tinha já, – nós somos uma família grande, de 8 filhos, eu tenho 4 irmãos e 4 irmãs – ele falou assim: “Olha, é muito difícil ser Indígena no Brasil. É melhor a gente abraçar totalmente a identidade brasileira, e deixar esse negócio de ser Indígena de lado.”


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Mas as visitas à terra tradicional, as histórias familiares, falando com a tia, com o tio, acabaram deixando muitos fios sem ligação na minha história. E eu comecei, quando adolescente, quando jovem, a fazer perguntas sobre os nossos ancestrais Indígenas. E fui reconectando esses fios. Então o meu pai, embora reticente, por causa da violência, por causa dos ataques, por causa da vergonha, por causa de tantos desafios de ser Indígena no Brasil, apesar de tudo isso, a gente acabou voltando aos poucos para as nossas origens.

E aí eu visitei a nossa aldeia Krenak. Se chama Terra Indígena Vanuire, no interior de São Paulo, que é uma Terra de vários Povos Indígenas. É uma Terra reconhecida, demarcada, tudo direitinho, mas muito pequenininha, onde vivem 7 povos Indígenas – um deles é o povo Krenak – que sofreram a diáspora nos anos 40, 50. Há 70, 80 anos atrás. Então, vendo essa realidade, isso, claro, me chamou muito a atenção.

Fui para a universidade e, observando essa realidade, eu comecei a entrar em contato com estudantes Indígenas, líderes Indígenas, ativistas Indígenas, e a procurar saber como é que eu posso fortalecer a identidade novamente, da minha própria família, mas também da minha própria comunidade, do meu próprio Povo.

Então, foi assim que eu comecei aos poucos me envolvendo com o movimento Indígena. E o grande mestre – um dos dois grandes mestres da minha história – é o Daniel Munduruku, escritor Indígena brasileiro. Foi quando ele nos visitou na universidade, onde eu estava estudando, que apresentou o movimento literário Indígena. O movimento de ativismo pela literatura.

Aí, eu participei de uma oficina com ele. Ele viu um texto meu, de uma história que meu pai, meu tio, sempre contavam. Essa história está no meu primeiro livro, que ganhou um prémio. Se chama “O Sonho de Borum”. E quando ele leu essa história, falou assim: “Edson, essa história, ela é linda. Ela precisa de ser compartilhada”. E aí, a gente publicou o livro juntos.

Do arquivo pessoal de Edson Krenak

Entrei em contato com o Ailton Krenak, que também estava muito envolvido com o movimento de literatura Indígena, nesse momento. E foi através de redes, de ativistas, de movimentos – há muitos movimentos Indígenas no Brasil – que a gente foi ampliando o nosso trabalho, o nosso contato, e ampliando a luta, também.

Então, fundamentalmente, a minha história começa no movimento de literatura Indígena, de escritores Indígenas. Unidos nesse amor pela histórias que nos definem, pelas histórias da natureza, pelas histórias que falam das nossas relações profundas e ancestrais com o meio ambiente.

A gente percebeu nesse momento, de encontro com escritores Indígenas que visitavam escolas e universidades no Brasil, que existia muito preconceito, estereótipos, inclusive racismo. Porque as pessoas não conheciam os Indígenas. Muitos lugares, as pessoas pensavam que os Indígenas nem existiam mais, que estavam somente presentes nos livros.

Aí, a gente começou uma caravana de escritores Indígenas. Se chamava Mekukradja, que é um nome que significa “transferindo conhecimento”, ou “compartilhando conhecimento”, em língua Kayapó. E nós começámos a visitar escolas, universidades, institutos culturais, comunidades, para contar histórias Indígenas, e compartilhar as nossas perspectivas, e esclarecer quem são os Povos Indígenas. Nós estamos ainda aqui. Nós sobrevivemos. Sobrevivemos os tempos coloniais, os tempos da ditadura. Nós sobrevivemos o século XX, e estamos aqui no século XXI. E estamos querendo ter relações melhores com a sociedade ao nosso redor.

E aí se tornou nacional, porque as nossas visitas foram em todo o país. Visitando, a demanda cresceu. O número de escritores também cresceram. A gente ia nas aldeias, nas comunidades, e descobria escritores, talentos, artistas, contadores de histórias, lá. E trazia para essa nossa caravana.

E aí teve uma vez que nós sediamos um evento internacional de escritores Indígenas, no Brasil. A gente recebeu escritores Indígenas do Chile, do Canadá, de outros países da América Latina. E a gente percebeu que tinha vários aspectos da nossa história que eram comuns.

Do arquivo pessoal de Edson Krenak

E eu passei a estar curioso a respeito dos Povos Indígenas de outros países, e decidi fazer o meu doutorado fora do Brasil. Fui buscar universidade. Foi muito difícil, porque muitas universidades do Brasil, e fora do Brasil, eles ainda têm uma dificuldade de entender a dinâmica dos conhecimentos Indígenas, essas novas e diferentes maneiras de ver o conhecimento da ciência, as epistemologias Indígenas. Óbvio que nós vemos o conhecimento. E aí, por algum mistério do universo, eu posso dizer assim, eu acabei chegando aqui em Viena, para estudar na Universidade de Viena.

E claro que quando eu estava trabalhando no meu projeto de doutorado, eu precisaria também de conversar com as comunidades. Porque a pesquisa Indígena, ela não é individual. Ela não é um projeto individual do pesquisador. Mas a pesquisa Indígena, a gente até chama uma cerimônia, de construir um conhecimento coletivo e que possa atender as demandas coletivas. E conversando com a minha comunidade, com outras comunidades do Brasil, eu perguntei para eles: “O que é importante eu pesquisar no meu doutorado, para vocês? O que é que seria relevante para a comunidade?”

Porque a gente vê muita pesquisa, uma pesquisa muito colonizadora, aqui. Está sempre presente na história das comunidades Indígenas que o pesquisador vai lá, produz o conhecimento, e só serve para ele, só serve para a universidade, e não serve para a comunidade. E a comunidade nunca vai ouvir falar dessa pesquisa de novo.

Então, eles traçaram, vamos dizer assim, os outlines para a minha pesquisa, para a minha investigação acadêmica. E me falaram: “Olha, o que é importante é o nosso território, nossa Terra. Tem que encontrar maneiras de expressar o que isso significa para a gente. Segundo, os nossos direitos. E como é que a gente entende isso, como é que a gente gostaria que isso fosse entendido fora do Brasil.”

Então, a minha cacica, a Lidiane Krenak, ela disse: “Edson, você precisa lutar onde a gente não pode ir agora lutar. E para fazer essa luta, você precisa defender os nossos direitos culturais, criar uma pesquisa que possa contribuir para isso”.


Do arquivo pessoal de Edson Krenak


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Então, quando eu vim para Viena, eu passei a conhecer outros movimentos Indígenas internacionais. Eu conheci a Cultural Survival num evento aqui, numa conferência. E eles me convidaram para trabalhar. A princípio, como consultor para eles. E depois vimos as necessidades no campo, no Brasil, e fomos trabalhar. No segundo ano, depois de 2 anos trabalhando na Cultural Survival, explodiu essa questão dos minerais de transição, essa questão dos minerais importantes para a tecnologia das baterias, carros elétricos, etc…

E explodiu por dois contextos. Primeiro, as propostas de novas legislações na União Europeia, em lugares como o OECD. Eles começaram a discutir essa legislação: “Como é que a gente vai remanejar os minerais que a gente precisa para essa nova revolução digital, da chamada energia verde?” Esse é o primeiro aspecto, o aspecto legal.

O segundo aspecto foi que eles listaram quantas minas precisariam, onde estavam os minerais, e onde eles iam abrir essas minas. E percebemos que 55% das minas dos minerais necessários iam impactar diretamente os Povos Indígenas. 55%. “Mas puxa, a gente precisa fazer alguma coisa a respeito disso. A gente não pode deixar que os governos e as empresas decidam sozinhos o que vai impactar as comunidades Indígenas”.

E aí, nós começamos essa coalizão de organizações internacionais Indígenas e não-Indígenas, para fazer frente, para garantir que os direitos dos Povos Indígenas nessa transição para uma energia verde possam ser protegidos, também. Para que os Indígenas não fiquem para trás nessa transição. Que eles possam contribuir, e também receberem os benefícios dessa nova energia.

Acabou uma coisa puxando a outra, buscando informação, colocando sempre o foco no que a comunidade precisa. E foi assim que esse trabalho acabou alcançando uma dimensão internacional.


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MARIANA MARQUES

Pode partilhar connosco um pouco mais sobre o crescimento do movimento Indígena no Brasil?

EDSON KRENAK

Eu divido em três momentos, o crescimento do movimento Indígena no Brasil, nas últimas décadas.

O momento antes da Constituição de 1988, que era o momento de luta por direitos, por reconhecimento da existência Indígena. Porque até à Constituição de 1988, nós não éramos reconhecidos,  nem mesmo como seres humanos completos. Éramos vistos como sub-humanos, como menores, como povos em tutela.

Esse primeiro momento, do reconhecimento da existência, ele teve o seu ápice na Constituição de 1988, que reconheceu, não somente a existência dos Povos Indígenas do Brasil, mas o direito deles de viverem como eles querem. O reconhecimento da soberania desses Povos sobre suas terras, os recursos, a língua, a cultura, seus modos de vida. Não é uma Constituição que foi dada pelo governo brasileiro, mas foi conquistada, exigiu muita luta.

Depois, a segunda fase, foi uma fase de luta por demarcação de territórios. Já é contemplada na Constituição de ’88. A gente precisava de ter esses mapas reconhecidos nos documentos, na legislação, nas políticas públicas do Brasil. Então, teve esse momento muito importante. Que, na verdade, ele não acabou. Mas só para deixar bem claro, que até à primeira década dessa segunda fase, a demarcação de terra era para a proteção das culturas Indígenas.

Só que com o Rio ’92, com a voz do saudoso, por exemplo, Paulinho Paiakan, que foi um líder Indígena muito importante, foi um dos meus tutores espirituais e mestres no início… Infelizmente, o COVID-19 acabou ceifando a vida dele. Nesse momento, da Eco ’92 do Brasil, os Povos Indígenas apresentaram que a demarcação de Terras Indígenas tinha uma relação profunda com a proteção do meio ambiente. Então, essa terceira fase, ela começa como os Povos Indígenas como os guardiães da biodiversidade.

Hoje, o movimento Indígena no Brasil carrega a história de reconhecimento das nossas existências. Carrega a luta pela terra, pelos territórios tradicionais. E está trazendo agora, com toda a força, essa mensagem, que quando o governo demarca Terra Indígena, ele está protegendo o meio ambiente.


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Nós começámos a compartilhar uns com os outros. Nós temos, no nível local, regional, nacional, e até Internacional, reuniões Indígenas, assembleias Indígenas. Criámos muitas organizações. Organizações regionais, como a APOINME, que é a Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, a Associação dos Povos Indígenas da Conca Amazônica, a Associação dos Povos Indígenas do Pantanal, do Cerrado, de cada bioma.

Então, esse movimento, ele vem com muita força, de baixo para cima. E ele assume um aspecto nacional. Não somente organizações locais e regionais, lutando pelos seus direitos. Quando a gente percebe que a mudança de governos – de esquerda, de direita, de centro, não importa – não estava resolvendo nada para os Povos Indígenas: “Espera aí, os governos estão resolvendo o problema da fome, o problema de modernização, o problema de industrialização, de educação deles. Mas as nossas demandas não estão sendo atendidas”.

E o pior de tudo, elas estão sendo, na verdade, atacadas, por novos conglomerados políticos. Você deve conhecer o que se chama no Brasil “a bancada dos 3 B”. Bíblia, bala e boi. Que são fundamentalistas cristãos. Não vou dizer que são todos os cristãos, porque temos cristãos que são aliados. O “boi”, que são o pessoal do agrobusiness, da indústria do agro. E também do pessoal da “bala”, o pessoal dos militares. O pessoal que tem uma força política muito grande no Brasil.

Então, eles se aliaram e propuseram interpretações à Constituição de ’88, – que não é somente imoral, mas até mesmo já declarada pela Suprema Corte como inconstitucional – o chamado Marco Temporal. Que reconhece a existência dos Povos Indígenas, somente se eles estavam, durante a Constituição de ’88, vivendo nos seus próprios territórios. É uma tentativa de apagamento da nossa história. Uma história de remoção forçada, de violência, de esbrulho das nossas terras, de invasão.


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É uma interpretação muito perigosa, que ainda está tramitando lá. Ela transfere para o setor privado o direito à terra tradicional. Então, não são as comunidades tradicionais que têm esse direito, mas o setor privado. O setor privado é responsável 100% pela desflorestação, mineração, queimas e uma série de outros problemas, de impactos ambientais seríssimos no Brasil. E que impacta também a comunidade aqui, na Europa.

Se você traça a cadeia de produtos que são produzidos no Brasil, e são vendidos aqui, na Europa, você vê: agrotóxicos que são proibidos aqui, são usados lá, para vender alimento aqui. Alimento, e produtos minerais, e outras matérias primas que são produzidas lá, que são produzidos em terras desflorestadas, em terras destruídas, em florestas destruídas, queimadas, rios contaminados, são vendidos na Europa.

Então, a gente foi nesse movimento, da base para cima. No sentido de que “cima” é quando a gente vai fazer defesa dos nossos direitos na corte nacional, na corte internacional, no governo federal, na câmara. E a gente vê uma participação política enorme dos Povos Indígenas.

Muitos percebendo que não adianta só ir na porta da corte. A gente precisa ser parte da corte. Não adianta convencer políticos. A gente tem que ser político, também. Não adianta a gente tentar fazer um lobby no Ministério. A gente precisa ter o nosso Ministério, também. Então, esse movimento alcançou essa proporção. E hoje, no Brasil, apesar de todos os aspectos limitantes, nós somos talvez o único país do mundo que tem um Ministério de Estado para os Povos Indígenas, liderado por uma líder Indígena, que é a Sônia Guajajara.


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MARIANA MARQUES

As tecnologias têm contribuído para que os jovens das diferentes comunidades Indígenas possam estar neste processo da luta política pelos direitos dos Povos Indígenas? E como é que a arte Indígena, incluindo a literatura, ajudam no fortalecimento do movimento Indígena no Brasil?

EDSON KRENAK

A gente costuma dizer que o coração da comunidade Indígena, do povo Indígena, é o território e a língua. A língua, como todas as línguas do mundo, ela traz em si a história. Mas a língua também é uma forma de tecnologia, tecnologia de comunicação. E os muitos dos nossos povos, eles têm várias tecnologias para se comunicar uns com os outros. E também tecnologias relacionadas com a comida, tecnologias relacionadas com o bem viver, que é esse estilo de vida que não prejudica o meio ambiente.

E a gente percebeu que para falar com o homem moderno, com o homem de hoje, para falar com as comunidades de hoje, para falar com a comunidade não-Indígena, é importante usar outras tecnologias também. Muita gente pensa que quando Povos Indígenas usam tecnologias electrónicas, por exemplo, eles estão deixando de ser Indígenas. Mas isso é uma ignorância. Não é porque uma pessoa usa uma roupa ou fala uma lingua Indígena que essa pessoa vai ser Indígena. Da mesma forma, o contrário. Então, nós usamos as tecnologias para o bem comum da comunidade, e para também fortalecer a nossa luta, fazer com que o outro nos compreenda.

Porque desde tempos imemoriais, nós temos, por exemplo, os xamãs ou os pajés, como chamamos no Brasil. Eles faziam várias viagens diplomáticas, aprendiam outras línguas. Muitas comunidades sempre falaram 4, 5 outros idiomas. Era uma forma de aprender outras tecnologias, outras inovações, outras ideias. E também de evitar a guerra, ou de criar novas formas de relações na floresta.

Então, a língua é muito importante. As tecnologias, elas têm um papel fundamental, de ampliar a nossa voz. Porque agora nós não precisamos mais da tecnologia do papel, do livro, que o homem branco sempre usou para publicar a nosso respeito. Hoje, nós podemos publicar livros a nosso respeito. Hoje, nós podemos usar tecnologias a nosso respeito. Nós podemos estar aqui, junto com você, usando essa tecnologia para ampliar a nossa voz, fortalecer o nosso trabalho.

O desafio dos jovens, hoje, é abraçar essas tecnologias, sem abandonar o conhecimento tradicional, sem abandonar as comunidades.


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MARIANA MARQUES

Depois da enorme violência e impunidade que marcaram a governação de Jair Bolsonaro, a eleição do Lula foi vista como uma fonte de esperança na luta pela defesa dos direitos dos Povos Indígenas no Brasil.

A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a liderança Indígena da Funai foram indiscutivelmente passos positivos, mas continuamos a assistir a inúmeras situações que negam esta narrativa de melhoramento. Como é que caracteriza o momento presente que atravessam as comunidades Indígenas no Brasil?

EDSON KRENAK

É difícil fazê-lo. É uma pergunta complexa e muito importante. A gente precisa respondê-la quase todos os dias.

Porque se você lê a nossa legislação, e como o Brasil está implementando, ou está incorporando, mecanismos internacionais de proteção dos Povos Indígenas e outras comunidades tradicionais, é muito bonito. Mas aí, a gente percebe que a lei, a justiça, tem um limite. E o limite dela é o limite político. E é por isso que não adianta ter leis fortes, se a vontade política não é forte.

Então, o grande desafio do Ministério dos Povos Indígenas do Brasil é convencer a vontade política do Brasil. É conscientizar essa vontade política – o grande setor da comunidade brasileira que votou, e aprovou, e apoiou, e ainda apoia Bolsonaro – a respeito das nossas demandas, a respeito das nossas preocupações.

Os 4 anos de Bolsonaro, eles não vêm sozinhos. Antes do Bolsonaro – 2, 3 anos antes – a Dilma Rousseff tinha sofrido o impeachment. E nós tivemos um governo de transição do Michel Temer, que preparou o caminho para o Bolsonaro. O Brasil foi em 2, 3 anos, de campeão do meio ambiente, para um dos piores números de proteção do meio ambiente no mundo, durante o governo do Temer e do Bolsonaro. Eles desmantelaram todas essas estruturas de proteção do meio ambiente e dos Povos Indígenas.


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E hoje, o governo Lula, ele começou uma trajetória que, segundo ele, segundo o governo, é de primeiro refazer essas estruturas, para que realmente possam fazer o seu trabalho. Nossa crítica é que está muito devagar. O objetivo número um do Presidente da República, segundo a Constituição do Brasil, é demarcar Terras Indígenas. E agora, mais de 2 anos depois do governo, ele demarcou somente 6. E tem 14, com todos os critérios para a demarcação de Terras Indígenas já preenchidos, já completos. Estão lá na mesa dele, esperando só para ele assinar, e ele não está assinando. Ninguém sabe porquê.

O Ministério não tem ainda força política para forçar o Presidente, pressionar o Presidente para fazer isso. Além disso, o Ministério tem outro desafio, que é orçamento. Então, esse é o problema de muitos políticos, e do Lula também. É mais bonita a fotografia, do que o trabalho mesmo a ser feito. Ele ficou muito bonito na fotografia com os Povos Indígenas. O mundo inteiro aplaudiu. Mas na hora de realmente criar um Ministério que tenha poder de decisão, e tenha poder de operação, está ainda devendo para os Povos Indígenas.


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Por exemplo, o povo Ianomâmi, que vive numa área que é maior que o país de Portugal. Eles são mais ou menos 30.000 pessoas. Eles vivem protegendo essa floresta enorme, cheia de vida, de biodiversidade.

E eles sofreram, durante o governo Bolsonaro, uma invasão de 20.000 grileiros, mineradores, garimpeiros ilegais. Imagina, uma população de 30.000 tem que enfrentar 20.000 garimpeiros. E eles vêm trazendo aviões pequenos, monomotores. Eles vêm construindo pistas de pouso ilegais. Eles vêm trazendo droga, vêm trazendo prostituição, vêm trazendo armas, vêm trazendo doenças, que os povos daí não conhecem.

Então, em muitas comunidades, você vai ver lá, tem histórias horríveis. Tão horríveis. De estupro, de violência contra mulheres e crianças Indígenas. Eles estão numa mata do tamanho de Portugal, e é muito difícil tirar os invasores de lá. Uma grande parte já saiu. Mas o governo precisa de recursos, para manter a segurança.

E o povo Guarani, no centro-oeste do Brasil, eles estão cercados por essa agricultura industrial, que não quer ceder 1 milímetro, para que eles possam viver. E que é responsável por uma série de crimes ambientais, crimes contra a pessoa Indígena, contra o patrimônio Indígena. Então, para resolver esse problema, o Ministério dos Povos Indígenas precisa de apoio da população do Brasil. Precisa de mais força política e de recursos. E é muito difícil.

A gente nunca teve um Ministério. A gente nunca teve uma presença política tão forte como agora, em 500 anos de história. E nós só temos 2 anos de Ministério. Então, muitos que escrevem sobre isso, e até eu mesmo, a gente precisa ser um pouco paciente. São somente 2 anos de Ministério, em 500 anos de devastação, 500 anos de violência.

Você usou uma palavra, “esperança”. Uma palavra que é muito nova, para os Povos Indígenas. Muitos de nós desconhecemos essa palavra, “esperança”. Porque nós não precisávamos dela. Hoje, a gente precisa dessa palavra, porque a gente vive em contextos de violência. A nossa esperança, ela vai em direção ao passado. A gente quer voltar a como nós estávamos antes, em harmonia com o meio ambiente, desenvolvendo nossas vidas, nossas maneiras de ser, de produzir, de viver. Porque aquilo trazia paz para a gente. Então, o que a gente quer é paz, é segurança. Como nós vivíamos antes.

É uma posição um pouco ambivalente. Por um lado, a gente precisa pressionar os políticos. E por outro lado, a gente precisa usar bem os benefícios dessa visibilidade que a gente nunca teve antes.


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MARIANA MARQUES

Enquanto membro da Cultural Survival, tem tido a oportunidade de acompanhar de muito perto o trabalho extraordinário que organizações comunitárias Indígenas fazem diariamente para proteger os seus territórios e o ambiente.

O que é que torna únicos os projetos liderados pelas comunidades Indígenas? E porque é que é tão fulcral garantir que há recursos e fundos, como o Keepers of the Earth, destinados a apoiar exclusivamente este tipo de projetos e organizações de base?

EDSON KRENAK

O trabalho das comunidades Indígenas, ele tem vários aspectos que tornam esses projetos importantíssimos.

Primeiro, é um exercício da autodeterminação, da auto-governança. É um exercício em full, de todos os seus direitos. Direitos de viver independentes, em liberdade, vivendo como eles querem.

E, segundo, esses projetos, eles fortalecem comunidades que estavam em extinção, vulneráveis. Que estavam sob a ameaça de genocídio, de ecocídio. É um projeto de, não vou chamar de ressurreição, mas de realmente rejuvenescimento dessas comunidades. É um exemplo para o mundo, de como comunidades tão vulneráveis têm capacidade de resistência, de resiliência, de desenvolver esses projetos.

E o terceiro ponto, ou razão, é porque nós estamos vivendo uma crise climática sem precedentes. E nós já estamos no ponto de dizer: “Já é tarde demais para prevenir”. Se você lê os jornais, cada semana tem um desastre relacionado com a mudança climática, com o aquecimento global, acontecendo no mundo. Isso mostra uma crise enorme. E a crise é causada por essa maneira extrativista, destruidora, como a gente desenvolve a nossa vida no planeta.


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E os projetos das comunidades Indígenas, eles têm uma mensagem. A mensagem é: “Veja, é possível desenvolver formas de vida que protejam o planeta, e que protejam a economia local, que protejam as espécies mais vulneráveis, e que podem trazer vida, paz, segurança e alegria para as comunidades.” Porque o futuro é comunitário. O futuro é ancestral, como a gente diz. São as formas tradicionais de vida comunitária que vão realmente salvar o planeta. Se é que é possível, nesse momento, salvar o planeta. Ou salvar a humanidade.

Porque, na verdade, como o Ailton Krenak gosta de dizer, quem está sob ameaça é a humanidade, com a mudança climática. O planeta vai continuar. E ele vai ter todas essas mudanças, vai se adaptar, vai mudar, vai se transformar. Mas será que nós somos capazes de nos adaptar e de nos transformar tão rapidamente? A gente está vendo que nós não somos capazes. Com todos esses desastres acontecendo, não somos. Então, os projetos de comunidades Indígenas, eles são muito ricos, porque eles trazem soluções locais e globais.


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MARIANA MARQUES

Há uma importante parte do seu trabalho que passa por dar visibilidade internacional aos Povos Indígenas, e por criar alianças internacionais que fortaleçam este movimento.

Pode dizer-se que há cada vez mais pessoas interessadas na luta dos Povos Indígenas, e mais aliados, por exemplo na Europa? Haverá um reconhecimento cada vez mais profundo sobre o papel que o colonialismo teve e continua a ter nas vidas das comunidades Indígenas?

EDSON KRENAK

Um aspecto do colonialismo foi a criação de leis, de políticas públicas, de legislação, que pudesse justificar suas ações. Então, o que nós temos visto na União Europeia, por exemplo, e nos blocos de países no nível geopolítico, eles criam muitos mecanismos internacionais, leis internacionais. E parte do nosso trabalho é observar essas leis, criticar essas leis, e tentar convencer os nossos aliados, e os políticos aqui da Europa, a transformar essas leis.

Eu vou te dar um exemplo bem concreto, que é essa nova diretiva da União Europeia para a sustentabilidade e negócios, que cuida da questão da cadeia de suprimentos, da cadeia de matérias-primas. Nós lutámos muito para que eles colocassem mecanismos mais fortes de proteção do meio ambiente, de proteção para os Povos Indígenas. Por exemplo, forçando as empresas que fazem negócios fora da Europa a respeitar o direito das comunidades Indígenas à Consulta Livre, Prévia e Informada.

Porque essas consultas são um mecanismo criado pela legislação Internacional. Os Povos Indígenas lutaram muito para ter isso, para que as empresas e os estados consultem as comunidades, antes de estabelecer qualquer projeto em suas terras, em seus territórios. Houve muita luta, muito lobby, muita discussão na União Europeia, no Conselho Europeu, para que essa consulta não entrasse no texto da legislação. Ela é mencionada. Já é um avanço? É um avanço. Mas a gente gostaria de o ter visto nesse texto da diretiva, e também no chamado Raw Materials Act, essa nova legislação, para que fossem respeitados e criados mecanismos mais fortes para proteger os Povos Indígenas.


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Então, um trabalho que a gente faz é tentar convencer, buscar aliados aqui na Europa. Para a gente fortalecer o nosso trabalho de advocacia junto a esses órgãos nacionais e internacionais, aqui na Europa. Mas também ir de encontro às grandes empresas – por exemplo, de carros, fábricas de carros que compram os minérios; A rede de supermercados que compram as frutas; As empresas farmacêuticas que compram os suprimentos que vêm do Brasil, que vêm das comunidades Indígenas, dos territórios Indígenas – para que eles possam ter uma due dilligence.

Temos algumas vitórias. Pequenas, mas importantes. Porque como que coloca o nosso pé na porta, e abre aquela fresta de esperança, de luz. Isso é importante. Eu tenho, assim, colecionado algumas experiências positivas, otimistas, a respeito de alianças aqui na Europa.

Vemos que muitas organizações, e grande parte da sociedade civil, entende que a luta Indígena é a luta deles também. Que a luta Indígena é a luta por uma humanidade que vive no mesmo barco, que navega no mesmo mar. E qualquer coisa que aconteça com esse barco, e com esse mar, vai impactar todo o mundo.


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MARIANA MARQUES

Como é que se consegue passar a mensagem sobre os desafios comuns que as comunidades Indígenas enfrentam, mantendo ao mesmo tempo muito presente a enorme heterogeneidade e pluralidade que existe entre os diferentes Povos Indígenas do Brasil, e do mundo?

EDSON KRENAK

É muito difícil. Tem hora que eu me faço essa pergunta, também. Mas é como numa família grande. Você tem muitas diferenças, mas a gente sempre pensa assim: “Aquilo que nos une é maior e mais importante do que aquilo que nos separa”. Embora essas separações não sejam todas negativas. Tem muitas diferenças que são muito positivas. Mas o que nos une é esse amor pela Mãe Terra. O que nos une é esse amor pelo respeito ao que é humano, pelo respeito às espécies, pelo respeito à biodiversidade. Isso nos une a todos, a todos os Povos Indígenas.

Tem alguns setores da sociedade mundial para quem, infelizmente, o meio ambiente e a biodiversidade não são importantes. As grandes empresas de extrativismo, por exemplo. Mas os Povos Indígenas, embora falem línguas diferentes, eles têm aprendido a usar a mesma linguagem, quando é a respeito de defender os nossos direitos.

Até mesmo a definição de “Povos Indígenas”. Ainda muitas comunidades não gostam desse termo. Mas eles entendem que a denominação “Povos Indígenas” é uma denominação de luta política, de contexto de interação, de relações de poder com o Estado, com as empresas, com as grandes corporações. Então, nesse contexto, a gente entende.


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MARIANA MARQUES

Sabemos que os minerais necessários à transição energética se localizam de forma muito significativa em territórios Indígenas. Um tema que a SIRGE Coalition, na qual o Edson integra o comité executivo, tem trabalhado de uma forma muito significativa.

Sabemos, também, que as políticas de proteção ambiental, como o “30×30”, podem levar à expulsão forçada de comunidades Indígenas dos seus territórios, em nome de uma ideia de conservação que exclui a presença de seres humanos nessas áreas protegidas.

quão crucial é trazer a realidade dos Povos Indígenas para os debates internacionais sobre o clima e a transição energética, para garantir que este processo seja justo, assente na defesa dos direitos humanos, e imune às piores instâncias de greenwashing?

EDSON KRENAK

A SIRGE Coalition tem uma estratégia muito forte, no sentido de atuar em áreas diferentes. A gente tem membros que atuam diretamente com mineradoras. Outros, diretamente com bancos, com investidores. Outros que atuam diretamente, como a Cultural Survival, com comunidades Indígenas. Organizações que focam bastante o trabalho na questão do debate a respeito do clima.

O mais importante para a gente é levar a demanda e a necessidade, a história Indígena, a esses lugares. Quando a gente mostra o que está acontecendo no território Indígena, isso se torna a nossa arma mais poderosa.

Vou te dar um exemplo. Uma empresa grande veio até nós, em março, e mostrou como as suas políticas de meio ambiente, de sustentabilidade, seguiam tudo direitinho. “OK. Vocês, em relação às outras empresas, em relação ao governo, em relação à legislação, vocês estão bem. Vamos conversar com as comunidades que estão perto dos seus empreendimentos”. E quando a gente conversa com as comunidades, a história é totalmente diferente.

As comunidades não são consultadas, como está acontecendo agora mesmo, no Brasil, em relação ao lítio. As comunidades não são consultadas. Nos relatórios de impacto ambiental que a mineradora vendeu – “vendeu” no sentido de “compartilhou” – com os investidores, não havia grandes impactos ambientais. No território, a comunidade me mostrou: “Olha, há 5 anos atrás, a gente tinha um rio aqui, um riacho, aqui. Agora, já não tem mais riacho. Está seco”. Ou: “Edson, as crianças andavam aqui, brincavam nesse território, nessa rua, tranquilamente. Hoje, elas não podem fazer isso mais, porque existe um ataque todos os dias, de morcegos. Os morcegos estão incomodados, stressados, por causa da mineradora”.


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O greenwashing não vai ser identificado por uma empresa de auditoria. Ele não vai ser identificado por uma certificação, que hoje está se multiplicando, por causa desses minerais de transição. Quase cada semana a gente recebe uma notícia de que tem uma nova certificação, uma nova estandardização. Somente as comunidades locais, as comunidades Indígenas podem fazê-lo. As comunidades Indígenas têm dados, inúmeros dados.

E não somente dados, mas também soluções. Porque lugares em que elas conseguiram vitória, mesmo que seja uma vitória simples, pequena, elas têm dado conta de proteger aquilo que protege a vida. Essa é a maneira como as comunidades Indígenas têm lutado contra isso.

E eu não preciso dizer que é uma luta quase que injusta. Porque as comunidades, além de serem as maiores impactadas pela mudança climática, são as que têm menos benefícios da transição, do desenvolvimento. Elas não têm quase fundos nenhuns. Quase não existem mecanismos financeiros, ou de mitigação de impacto da crise climática. Então, as comunidades Indígenas quase fazem milagres.

Porque não existe seguro contra desastre ambiental nas suas comunidades, mas existe o seguro milionário para uma mineradora. Não existe um investidor poderoso nos projetos de meio ambiente da comunidade, mas existem bancos nacionais e internacionais investindo em mineradoras. Então, essa é a nossa luta. E é por isso que eu aprecio o trabalho que a Azimuth está fazendo, de dar a voz a essa questão, de fazer essas perguntas tão importantes, e de compartilhar aqui o que está acontecendo, e como estão acontecendo essas questões.


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MARIANA MARQUES

Obrigada pelas palavras, Edson.

Estava a pensar nos nossos ouvintes que estejam, por exemplo, na Europa, e que podem estar a ganhar cada vez mais acesso a vozes Indígenas, e a ficaram mais sensibilizados para a proteção dos direitos dos Povos Indígenas.

Porém, podem ainda perguntar-se: “Mas, afinal, aqui tão longe, o que é que eu posso fazer”? Quais são as melhores formas de ser hoje um aliado dos Povos Indígenas?

EDSON KRENAK

Minha melhor resposta seria: “Vem passar um tempo em nossas comunidades, e aprender com a gente, e lutar connosco, lá”. Mas eu sei que é impossível, porque as comunidades são pequenas, são vulneráveis, têm vários desafios.

Então, a melhor forma seria, primeiro, se informar a respeito do que as comunidades Indígenas estão fazendo. Se informar a respeito das organizações Indígenas. Se informar a respeito das operações e atividades europeias que impactam as comunidades Indígenas. Apoiar projetos políticos e sociais que apoiam essas comunidades políticas.

E, claro, convidar Indígenas para vir aqui conversar com vocês. Nós temos, não somente no Brasil, mas no mundo inteiro, Indígenas, líderes Indígenas, mulheres Indígenas, jovens Indígenas maravilhosos, que estão prontos para compartilhar, ensinar, e trabalhar junto e colaborar. Então, a gente precisa de mais colaboração.


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