Connecting the Dots com Daniel Kobei
O Director da organização indígena Ogiek Peoples’ Development Program fala-nos sobre o seu extraordinário percurso de resistência e luta pelos direitos das comunidades caçadoras-recolectoras do Quénia.
Através do nosso apoio a projectos liderados por organizações Indígenas na região africana dos Grandes Lagos, e através de outros episódios deste podcast, a Azimuth World Foundation tem procurado chamar a atenção para os muitos casos de deslocação forçada enfrentados pelas comunidades Indígenas em nome da conservação, da extração de recursos ou do turismo.
As comunidades que apoiamos, como os Batwa ou os Endorois, prosperaram nas suas terras ancestrais até serem expulsas sem Consentimento Livre, Prévio e Informado. Estas comunidades, que enfrentam uma marginalização profundamente enraizada e as consequências das alterações climáticas (pelas quais, como sabemos, são as menos responsáveis), continuam a lutar pela sua sobrevivência e pela preservação dos seus modos de vida, das suas culturas e dos seus vastos e singulares conhecimentos.
Nas florestas das regiões montanhosas do centro do Quénia, os Ogiek prosperaram como caçadores-recolectores durante séculos. No entanto, desde a era colonial até aos dias de hoje, têm enfrentado repetidas vagas de invasão das terras ancestrais que desde há tanto tempo protegem. Esta situação tem colocado enormes desafios à sua sobrevivência e bem-estar. Ainda assim, a sua luta pelo reconhecimento e realização dos seus direitos tem sido uma enorme fonte de inspiração para as comunidades Indígenas de todo o mundo.
Hoje conversamos com Daniel Kobei, Diretor Executivo da Ogiek Peoples’ Development Program, que desempenhou um papel fundamental no processo judicial apresentado ao Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos, exigindo justiça para os abusos cometidos pelo governo queniano contra os Ogiek. O resultado desta batalha jurídica constitui um marco histórico, não só para os Ogiek, mas para todas as comunidades Indígenas em África que enfrentam deslocações e expulsões forçadas.
Através da OPDP, supervisionou também numerosos projectos que beneficiam as comunidades Ogiek em áreas como a governação empresarial e a capacitação institucional, a educação, a cultura, a língua, os direitos fundiários, os recursos naturais, a conservação ambiental e a justiça climática. Daniel tem uma vasta experiência na participação em fóruns internacionais decisórios e de defesa de direitos, no estabelecimento de alianças internacionais e no fortalecimento de um movimento global de defesa dos direitos Indígenas que tem ganho cada vez mais robustez e impacto.
Veja a versão em vídeo em baixo (legendas em Português disponíveis) ou faça scroll para ouvir a versão em podcast (em inglês) e para ler a versão escrita versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Daniel Kobei, bem-vindo ao Connecting the Dots e muito obrigada por se juntar a nós hoje. Antes de nos debruçarmos sobre os muitos desafios que os Ogiek enfrentam devido à invasão das suas terras ancestrais e à expulsão forçada, poderia partilhar connosco uma visão geral das comunidades Ogiek e da prosperidade que caracterizava as suas vidas na floresta? De onde são originários os Ogiek, e onde residem atualmente? Quais são algumas das características do seu estilo de vida tradicional?
DANIEL KOBEI
Muito obrigado, Connecting the Dots. Posso dizer-vos que a comunidade Ogiek tem 52.000 indivíduos, registados no censo de 2019. E, como comunidade, consideramo-nos proprietários do complexo florestal de Mau. No ano de 1000 d.C., segundo os historiadores, migrámos da região costeira do Quénia.
Atravessámos toda a floresta, e nesse percurso alguns de nós foram assimilados. É por isso que os nossos números não são tão elevados quanto os de outras comunidades. Com a abertura da floresta aos agricultores e aos criadores de gado, entre outros, a nossa comunidade começou a deslocar-se. E acabou por se fixar no complexo florestal de Mau, que se extende por cerca de 400.000 hectares de terra.
Algumas das nossas comunidades estão no Monte Elgon, no lado ocidental do Quénia. Posso dizer que, no complexo florestal de Mau, há seis condados nos quais vivem os Ogiek: Nakuru, Narok. Kericho, Baringo, Uasin Gishu e Nandi. E os Ogiek que vivem no lado ocidental do Quénia estão em Bungoma, que fica em Chepkitale.
Créditos: OPDP
Eu tive o privilégio de crescer no complexo florestal de Mau. Fui um rapaz que fazia o seu trabalho na escola, mas também um rapaz que gostava de caçar e apanhar bagas na floresta. Lembro-me de irmos recolher mel. Especialmente nós, os Ogiek, sentimo-nos nostálgicos ao pensar nas abelhas sem ferrão. Era fácil recolher o mel, porque as abelhas não nos picavam. Infelizmente, neste momento em que falamos, as abelhas sem ferrão estão quase extintas no Quénia, devido à sobre-exploração ou à destruição da floresta por intrusos, madeireiros, pessoas que estão a agir ilegalmente.
Segundo as nossas tradições, a floresta é tudo. É essencial na forma como sempre foram praticadas as nossas cerimónias, os casamentos tradicionais, a apresentação à comunidade das crianças acabadas de nascer, os rituais de iniciação e de passagem da infância para a idade adulta. Eu costumava dizer às pessoas: “A nossa floresta é como um supermercado, porque é lá que vamos buscar tudo. Os medicamentos, os alimentos, as conchas, os materiais para construir casas”. Era esse o tipo de afinidade e proximidade que tínhamos com a floresta, estava em tudo o que possuíamos. Gostávamos do ambiente agradável. Apreciávamos a água limpa dos riachos, porque naquela época a poluição era mínima.
Como Ogiek, não sabíamos que um dia alguém ia acordar e dizer: “Vocês têm de se mudar.” Não imaginávamos que um dia alguém ia dizer: “As vossas fronteiras nesta terra não são as correctas”, que iam dizer-nos que não devíamos estar aqui, mas noutro lugar. E isso trouxe-nos até à situação actual. Muito pode ser dito sobre o complexo florestal de Mau, que é a nossa casa. Por toda a parte, é lá que reside o futuro dos Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Desde o início da era colonial, os Ogiek e outros povos caçadores-recolectores do Quénia têm sido vítimas de expropriação e expulsão das suas terras ancestrais. Daniel, pode falar-nos destes acontecimentos, das diferentes motivações que lhes estão subjacentes e da forma como culminaram em 2009, com o governo a emitir um aviso de despejo de 30 dias para os Ogiek no complexo florestal de Mau?
DANIEL KOBEI
Eu diria que se trata do despejo perene da comunidade Ogiek. Os Ogiek foram repetidamente despejados pelo governo colonial. Esse mesmo governo colonial que desde a Land Carter Commission de 1933-1934 afirmou que os Ogiek deviam ser assimilados por outras comunidades, porque não se tratava de uma população numerosa. Esses foram os primeiros despejos, os mais memoráveis, que começaram por dizer dos Ogiek: “Eles que sejam assimilados”. Porque tinham como objetivo abrir caminho para os colonos brancos, para a criação das chamadas ilhas brancas.
Seguiram-se outros despejos. Como o que aconteceu após o processo de independência, e que se iniciou quando o governo quis instalar indivíduos politicamente alinhados em Mau, removendo os Ogiek.
E depois, seguiu-se o argumento: “Queremos fazer conservação”. Esta tem sido uma das maiores motivações para os despejos. Tem sido uma arma na remoção dos Ogiek das suas terras ancestrais no complexo florestal de Mau. Isto levou a que os Ogiek sentissem que não tinham para onde ir.
Créditos: OPDP
Na verdade, no início da década de 1990, começaram também a chamar-nos todo o tipo de nomes depreciativos, como “Dorobos“, que significa “pessoas sem gado”. Costumavam dizer: “Estes são dorobos, são pobres sem gado”. Ou seja, mediam a riqueza em termos de gado, em termos da quantidade de cereais, da quantidade de colheitas que se possui. Mas os Ogiek nunca tiveram todas essas coisas.
Em 1992, o Presidente Moi, que já faleceu, decidiu que queria reservar parte da floresta para os Ogiek, porque havia um clamor em torno da inexistência de um lugar permanente para as comunidades. Os Ogiek permaneceram na floresta e tornaram-se trabalhadores do Serviço Florestal do Quénia. Depois disso, após Moi nos ter dado aquele pedaço de terra, apercebemo-nos que indivíduos exteriores à comunidade se mudavam em grande número e estavam a ocupar muita terra pertencente aos Ogiek. Em 1997, os Ogiek recorreram ao Tribunal Superior de Nairobi e obtiveram ganho de causa, tendo o governo impedido novas transacções e novas demarcações no complexo florestal de Mau.
Mas, posteriormente, o governo rejeitou a decisão do Tribunal e deixou de a respeitar. Continuou então a designar parte da terra pertencente aos Ogiek. na área onde ficaria a comunidade, e depois, em relação à outra parte, disse tratar-se de uma área para “conservação”. Nessa outra parte cedia terra para agricultura e para todo o tipo de indústrias. Noutras áreas ainda, o governo dizia que queria construir uma barragem, ou outras coisas do género.
O processo no Tribunal demorou quase 12 anos. Íamos até Nairobi. Por vezes, diziam-nos no Tribunal que “o juiz está doente. O processo desapareceu. Passa-se isto e aquilo. É por isso que o vosso caso não pode ser ouvido”. Ou seja, o processo foi sendo adiado.
Créditos: OPDP
Mas foi só mais tarde, em 2009, que comecei a intervir no assunto pessoalmente, de forma mais direta. O Serviço Florestal do Quénia lançou um aviso prévio de despejo, e os Ogiek tinham 30 dias para se mudarem. Qualquer pessoa que estivesse em Mau tinha de sair de lá. Nessa altura, já tínhamos começado a OPDP (em 1999). Por isso, eu tinha muitas ligações com outras organizações da sociedade civil. Depois telefonei ao atual Secretário Permanente dos Negócios Estrangeiros, o Dr. Korir SingOei. Liguei-lhe porque, nessa altura, ele estava a ajudar os Endorois na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Disse-lhe: “Caro amigo, os Ogiek estão em apuros. Não são só os Endorois que estão nessa situação. Os Ogiek também estão em apuros. Podemos contar com a sua ajuda? Caso contrário, não teremos para onde ir”.
Nessa altura, a comunidade Ogiek decidiu que devíamos levar o caso à Comissão Africana. Quando Korir escreveu à Comissão, esta concordou que era preciso interromper a ordem de despejo e requisitou a presença do governo queniano. Nessa altura, tínhamos um governo de coligação liderado por Raila Odinga e pelo presidente Mwai Kibaki, que já faleceu. Então, a Comissão determinou: “Parem qualquer despejo em curso dos Ogiek, até que o caso seja ouvido e haja uma decisão”.
Quando Korir regressou, houve alguns problemas de comunicação. Convoquei o Conselho de Anciãos, com 50 membros, e pedi-lhes que decidissem: “Continuamos com o caso na Comissão Africana? Ou continuamos com o caso de Nairobi?” Ou seja, o caso iniciado em Nairobi, em 1997. A comunidade decidiu: “Queremos avançar com o caso na Comissão Africana”. Nessa altura decidia-se já a admissibilidade do caso, se seria ou não aceite pela Comissão Africana. E, efectivamente, o caso foi admitido, já depois de os Ogiek me terem dado luz verde, a mim e à OPDP, para sermos a ponte entre a comunidade e a Comissão.
E foi então que comecei a liderar o processo na Comissão Africana. Demorou oito anos. Relembro que, quando lá fomos e foi feita a admissibilidade do caso, este foi aceite e foram decretadas “medidas provisórias”, que suspendiam todas as ações do governo que estavam em curso. Essas medidas provisórias foram recebidas e aceites pelo governo. Mas durante todo o processo verificou-se, novamente, muita exploração madeireira. O Serviço Florestal do Quénia estava a emitir licenças para exploração madeireira e muitas outras coisas, que continuaram a acontecer.
Créditos: OPDP
Em 2012, a Comissão Africana decide enviar o caso para o Tribunal Africano. Isto por causa daquilo a que chamamos “violações em massa”. O caso transitou então para o Tribunal Africano, onde foi dado como admissível, e começámos a apresentar depoimentos e vídeos que os substanciassem. Tudo o que nos ajudasse a provar o nosso caso acima de qualquer dúvida.
E em 2014, teve lugar a audiência em Adis Abeba. Nessa altura, 26 Ogiek foram até Adis Abeba. E o nosso caso foi ouvido nos dias 28 e 29 de novembro de 2014. Então, durante esses dois dias, tivemos dois Ogiek, uma mulher e um homem, que foram testemunhas. E contámos também com o testemunho de uma especialista, a Dra. Liz Alden, que participou e partilhou uma opinião independente sobre o historial da presença dos Ogiek em Mau. Os Ogiek não foram para Mau. Eles estavam em Mau, quando o governo queniano e os colonos brancos travaram conhecimento com os Ogiek. Ou seja, os Ogiek não se mudaram para Mau, pelo que devem ser autorizados a lá permanecer, é a sua terra ancestral. Não são responsáveis pela destruição. O governo queria provar que “os Ogiek foram responsáveis pela destruição da floresta”. Mas no julgamento de 2017 ficou provado para além de qualquer dúvida que nada apontava para que os Ogiek fossem a causa da destruição da floresta, ou a causa da desflorestação de Mau. No seio do governo sabia-se que a comunidade Ogiek vivia lá, e que nada de errado havia ocorrido até às ações do governo. Eu disse-lhes: “Os Ogiek não têm fontes de energia. Não têm tractores ou bulldozers, capazes de cortar e transportar árvores, nem camiões para as transportar.”
E o caso prosseguiu. Em 2015, o Tribunal Africano solicitou ao governo do Quénia e à comunidade Ogiek aquilo a que chamamos de “acordo amigável”, pediu que negociássemos. Mas o governo não veio preparado para esse processo. Pôs condições muito rigorosas. Uma dizia que: “Têm de ter uma certidão de nascimento. Têm de se registar como sendo Ogiek”. Eu respondi: “Por que é que havemos de nos registar enquanto Ogiek, se já somos Ogiek? Porque é que temos de ter uma certidão de nascimento?” Pessoalmente, nunca tive uma certidão de nascimento até 1990, quando viajei de avião pela primeira vez, e não era fácil para um queniano obtê-la. Só se tornou mais fácil há pouco tempo, quando se tornou obrigatório que as crianças pequenas tivessem uma certidão de nascimento. Ou seja, não se podia estar a exigir aos Ogiek algo que não era exequível. Depois disseram: “Não queremos que um branco seja advogado da comunidade Ogiek”. Também disseram: “Não queremos que a Comissão Africana represente os Ogiek.” Mas quando esta estratégia se tornou clara, o tribunal disse: “Não. Se é assim que vão actuar, não podemos continuar com este vai e vem. Por isso, vamos avançar para julgamento”.
Créditos: OPDP
Então, no dia 26 de maio de 2017, o caso foi decidido a favor dos Ogiek. Decidiu-se que as suas acusações tinham mérito. Foi afirmado que os Ogiek são os Povos Indígenas ancestrais do Quénia, que são os proprietários de Mau e que não se deveria repetir qualquer forma de despejo. Infelizmente, a decisão não foi respeitada. Nessa altura, o Tribunal ficou aquém daquilo a que chamamos “reparações”.
A 23 de junho de 2022 foi emitida uma nova sentença, que desta vez incluiu o tema das reparações, e esta foi novamente a favor da comunidade Ogiek. Alguém me perguntava: “Como é que conseguiu?” A verdade é que eu tinha estabelecido aquilo a que se chama um “mecanismo de feedback”, através do qual me assegurei que a comunidade Ogiek me dava informações. Quando recebia uma carta do Tribunal, da Comissão, ou dos advogados, tinha de realizar fóruns públicos e informar a comunidade. E eles voltavam a dizer: “Continua, continua”. Porque, nessa altura, nunca quisemos que a comunidade não soubesse o que se passava. A comunidade tinha de saber tudo. Este caso é deles. Não é o caso do Daniel. É o caso dos Ogiek. Por isso, essa ligação é essencial.
E para além disso, outra vantagem que tivemos durante o processo foi o apoio das mulheres. As mulheres não têm medo, felizmente. As mulheres são muito fortes, muito determinadas. Continuaram a apoiar-nos, a dar-nos uma enorme motivação. Durante as reuniões com a comunidade, ouvimos belas canções folclóricas motivacionais, que nos diziam para continuarmos a lutar pelos nossos direitos à floresta de Mau. Porque é lá que estão os nossos antepassados. Foi lá que os nossos antepassados foram enterrados. Temos essa ligação com eles, todas as nossas vidas dependem disso.
Durante o período que antecedeu a audiência sobre reparações, voltaram a suceder-se os atrasos, entre 2017 e 2022. Durante cinco anos. E esse foi outro problema, porque apareceu a COVID e começaram a dizer-nos que: “Não, não podemos ouvir-vos online. Não podemos, porque as testemunhas ficarão comprometidas”. E isso também atrasou tudo.
Agora, no ano passado, em 2023, depois de termos começado a trabalhar com o governo, a tentar fazer esta ou aquela iniciativa com o governo, no dia 1 de novembro, voltou a acontecer um despejo. E este acontecimento foi também motivado pelo facto de ter havido aquilo a que se chama, penso eu, a Cimeira Africana sobre o Clima, e o governo quis mostrar serviço, quis afirmar-se como campeão da proteção florestal. E penso que isso levou o Presidente a exigir a toda a gente que se fosse embora. E em algumas das nossas comunidades, num local chamado Sasimwani, foram removidas 700 pessoas. Neste preciso momento, essas pessoas estão sem terra. Estão na rua. Precisam de comida, precisam de abrigo. Foram alugar pequenos quartos num centro chamado Ololkirkiria. Mas neste momento os seus filhos não estão na escola. Não sabem o que fazer.
E durante este processo, vieram dizer-nos que: “Há um plano para os mercados de carbono e para os créditos de carbono”. E nós perguntámos: “E o que é que isso envolve? Nós não estamos informados.” Porque essa questão do carbono, que permite a uns poluírem, enquanto outros tentam sanear, ou tentam compensar, tudo isso são coisas que não achamos muito interessantes. Portanto, até ao momento, houve muito pouca implementação das decisões deste caso. E não só isso, como temos enfrentado outros desafios.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Como descreveu, a 1 de novembro de 2023 verificou-se uma nova expulsão. Casas foram destruídas, incendiadas, e vidas foram destruídas. O que acha que é necessário para que a decisão do Tribunal Africano seja de facto implementada?
DANIEL KOBEI
Realmente, é algo de terrível. Um dos casos determinou que devia haver uma indemnização de 157.800.000 KES à comunidade Ogiek. E disseram-nos: “Sim, podemos pagar. Mas o Procurador-Geral não nos deu luz verde.” Porque é que o Procurador-Geral não assume as suas responsabilidades? Mas, no final de contas, cabe ao Presidente fazê-lo. É o presidente do Quénia que deve reunir a sua equipa e dizer-lhes que implementem as decisões do caso dos Ogiek.
Queremos apenas a pedir à comunidade internacional que apoie os Ogiek. E àqueles que têm redes de contactos, ou que têm voz junto do governo queniano, que falem com os membros do governo e lhes digam que é importante dar aos Ogiek a oportunidade de regressarem a casa, e que devem implementar à letra as decisões do caso dos Ogiek. E que sejam dadas garantias de que os Ogiek serão protegidos de qualquer tipo de violação.
E neste momento deve também haver confiança nas competências da comunidade Ogiek para levar a cabo a proteção da floresta. Por isso, não lhes deve ser negado esse papel, de proteção e conservação da floresta, porque os Ogiek sabem desempenhá-lo. Está nas suas tradições. Por isso, os conhecimentos tradicionais dos Ogiek em matéria de conservação devem ser utilizados e deve ser-lhes dada uma oportunidade.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Muitos especialistas fizeram notar que este último despejo foi provavelmente levado a cabo para garantir que o governo queniano tem autoridade sobre as terras a serem incorporadas em mercados de carbono. Sabemos também que o governo queniano assinou recentemente um significativo acordo de compensação de carbono com a Blue Carbon, por exemplo.
E tudo isto está a acontecer ao mesmo tempo que os Povos Indígenas são cada vez mais reconhecidos internacionalmente como os administradores mais eficazes dos ecossistemas florestais e da biodiversidade. Pode dizer-nos que lições o caso da comunidade Ogiek tem para o mundo, no que se refere aos perigos associados às falsas soluções climáticas? E como é que as comunidades Indígenas são particularmente vulneráveis a estas soluções de transição verde que não respeitam os direitos humanos?
DANIEL KOBEI
Esta é uma solução climática forçada. A comunidade está a ser forçada a aceitar uma solução climática que não é favorável ao seu estilo de vida. Como muitas outras comunidades, onde planos destes estão em curso, desenhados sem qualquer consulta – nem mesmo Consentimento Livre, Prévio e Informado – ou sem qualquer partilha de benefícios, do que é acumulado com os chamados créditos de carbono e com tudo o resto.
Mas a minha mensagem para o mundo é que, ao encontrarem este tipo de informação, estes projetos que estão a surgir em nome das soluções climáticas, ou das alterações climáticas, tenham muito cuidado. Porque estes podem vir a custar-vos as vossas terras e territórios. Porque a maioria das áreas que estão a ser visadas nestes projetos são terras e territórios dos Povos Indígenas. Isto significa que os Povos Indígenas e as comunidades locais devem permanecer vigilantes em relação às suas terras. Caso contrário, podem ser forçados a adoptar certas soluções climáticas, tal como testemunhámos com a comunidade Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Um dos outros obstáculos que os Ogiek têm enfrentado é a recusa do governo queniano em reconhecer-vos como Povo Indígena. Pode falar-nos dos impactos desta política governamental para os Ogiek, e de como isso pesa na visibilidade e reconhecimento dos Ogiek por parte de outros quenianos?
DANIEL KOBEI
A Constituição atual tem uma secção muito breve que fala sobre os Povos Indígenas. E descreve os Povos Indígenas como sendo historicamente caçadores-recoletores ou pastoralistas. Por isso, as outras comunidades acreditam que estes são Povos Indígenas, mas dizem: “Porque é que lhes devem ser dados privilégios especiais?” Nós, por exemplo, não somos tão instruídos como as outras comunidades. Estamos ainda atrasados noutras áreas. Por isso, não é possível aplicar os mesmos critérios.
E apesar de o grupo de trabalho da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos ter elaborado uma lista dos Povos Indígenas do Quénia, os governos não a aceitaram, nem disseram: “Estes são os Povos Indígenas do Quénia e devem ser protegidos”.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
E como é que acha que os jovens estão a lidar com isso? Sei que trabalha muito de perto com os jovens. Como é que eles vêem o seu futuro nas comunidades?
DANIEL KOBEI
Em primeiro lugar, a maioria dos jovens está agora interessada em avançar os seus conhecimentos, ou seja, a exigir mais conhecimentos sobre tecnologia. E muito poucos estão realmente interessados em lutar pelo modo de vida Indígena. Isto acontece porque foram privados de compreender as suas culturas. Foram privados de saber que somos diferentes das outras culturas. Ou seja, há esta pressão para dizermos que somos todos iguais, que não somos diferentes, mas as comunidades continuam a sofrer.
Como Ogiek, o que temos estado a fazer é registar e arquivar a nossa língua, para que os jovens tenham acesso. Estamos a ensinar os mais velhos a ler e a escrever. Porque há muita gente do nosso Povo que não sabe ler nem escrever. Por isso, começámos a fazê-lo no nosso Centro. E depois, em relação àqueles que perderam a língua, que já não falam a nossa língua, estamos a tentar ensiná-los a falar a língua Ogiek.
Para que eles façam parte da nossa luta. Porque aqueles que estão interessados em conhecer a língua Ogiek, em conhecer melhor as culturas, vêm facilmente em nossa defesa. Mas quando nem sequer estamos interessados em conhecer a língua, em conhecer a cultura, então já não há hipótese, e estamos totalmente assimilados.
De facto, o que fizemos foi ir mais longe e começar a escrever na língua Ogiek. E fazemos até concursos para os jovens. Isto faz com que eles se interessem mais na aprendizagem sobre os Ogiek. Porque isso está a ser escrito, está a ser falado. Alguns jovens, rapazes e raparigas, já começaram a escrever poesia, a declamar poemas na língua Ogiek. E a música também é fundamental na tentativa de promover a língua Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Pode falar-nos mais sobre a história, as áreas de intervenção e os principais projectos levados a cabo pela Ogiek Peoples’ Development Program?
DANIEL KOBEI
Um dos nossos marcos é, sem dúvida, termos levado a comunidade a conseguir os dois veredictos históricos em tribunal.
Outro marco tem sido a reabilitação da floresta destruída. É difícil acreditar, mas já plantámos 1,6 milhões de árvores nativas em Mau, desde 2016, e que já são hoje árvores grandes. E só este ano já conseguimos começar a trabalhar com alguns parceiros e estamos novamente a plantar árvores nativas, cerca de 20 000. Queremos no próximo ano chegar às 80 000 árvores. Estamos a trabalhar de forma tripartida, com a comunidade, a OPDP e o Serviço Florestal do Quénia, para reabilitar o complexo florestal de Mau. Porque, apesar de estarmos a lutar pelos direitos à terra, não queremos ter uma terra estéril. Precisamos que na nossa terra prospere a floresta, para que consigamos viver nela.
Créditos: OPDP
Também demos início a outros projectos, como o projeto de painéis solares. Conseguimos fornecer painéis solares a mais de cem famílias. Isto porque alguns dos desafios que temos nas aldeias prendem-se com a inexistência de eletricidade. Certas comunidades nunca tiveram acesso a eletricidade. Por isso, com o apoio dos nossos parceiros, providenciámos painéis solares a famílias vulneráveis.
E conseguimos também criar o Centro Cultural Ogiek, que é um dos grandes sucessos da OPDP. Estamos a falar de um projeto com um custo superior a 250.000 USD. E no Quénia esse é um valor substancial, para construir um centro. Fica num terreno de 5 acres, que adquirimos efetivamente. Porque sempre que queríamos criar o centro, os Serviços Florestais do Quénia levantavam problemas connosco.
E agora existe, o Centro. E alberga um museu. E também um herbário, onde damos formação aos jovens que estejam interessados em saber mais sobre plantas medicinais. Muitas pessoas interessaram-se pela pelas plantas medicinais depois da COVID.
Créditos: OPDP
Estamos também a trabalhar com alguns dos nossos colaboradores e parceiros, e já conseguimos entregar bolsas de estudo a 24 raparigas Ogiek. Que são necessárias, tendo em conta o casamento e a gravidez precoce, entre outros desafios.
Mas, acima de tudo, desenvolvemos um projeto muito concreto de subsistência, para mulheres Ogiek. As mulheres escrevem pequenas candidaturas e nós damos bolsas, para que possam ter a sua própria fonte de rendimento. E isto também tem funcionado bem, e muitas das mulheres apoiadas têm agora a sua própria fonte de rendimento, resultantes dessas candidaturas. Alugamos tendas para algumas mulheres. A outras fornecemos ovelhas, ou fornecemos vacas.
Isto permite-lhes sustentar as suas vidas no dia-a-dia. Porque, como eu costumo dizer, as pessoas não podem comer direitos humanos. Não podes falar às pessoas simplesmente de direitos humanos. Elas responder-te-ão: “Sim, já ouvi falar de direitos humanos. Mas o que é que eu vou comer? Como ponho comida na mesa?” Por isso, estamos também a criar estas iniciativas, e a lançar oportunidades para jovens e mulheres desenvolverem projectos de subsistência.
Também estabelecemos muitas redes entre as comunidades de caçadores-recolectores no Quénia. São seis comunidades: os Yaaku, os Sengwer, os Ogiek do Monte Elgon, os Aweer, os Wayyu e os Waata. E também trabalhamos com redes em África. Estamos actualmente a acolher a International Land Coalition, no âmbito da Plataforma Regional sobre Povos e Territórios Indígenas em África. Nós, enquanto OPDP, somos os anfitriões. E estamos a trabalhar com 15 países em África. E temos ainda estreitas relações de trabalho com muitas organizações no Quénia, e com outros parceiros internacionais.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
O que torna as organizações e os projectos Indígenas tão eficazes? E por que razão deveriam as organizações Indígenas receber mais financiamento direto?
DANIEL KOBEI
Vou falar da minha experiência pessoal, porque estou no movimento há quase 25 anos. E houve uma altura em que meu trabalho estava a ser apoiado por certas organizações não Indígenas. E chegou uma altura em que eu tive de dizer: “Não”. Tive de dizer a alguns parceiros: “Se não estão a apoiar-nos diretamente, fiquem com o vosso dinheiro”.
Porque, às vezes, somos obrigados a fazer coisas que não fazem sentido para nós. Quando o o financiamento é direto, usamo-lo em benefício das nossas comunidades. Mas quando vem através de terceiros, estes intermediários usam parte do financiamento para os seus próprios custos administrativos. Quando finalmente chega até nós, o financiamento é muito reduzido, não tem qualquer impacto. Mas quando se apoia diretamente os Povos Indígenas, eles usam os recursos e geram resultados.
E há já muitos casos, como acontece com a OPDP neste momento, em que é depositada muita confiança por parte das organizações internacionais que querem apoiar. A auto-governação está a par da auto-determinação. No momento em que nos financiam diretamente, estão a fortalecer a nossa auto-determinação. E, assim, podemos fazer as coisas à nossa maneira e com confiança. Dessa forma, seremos também capazes de criar as nossas próprias estruturas de governação.
Créditos: OPDP
E, pessoalmente, sou agora um dos coordenadores do fundo de emergência “Indigenous-led Security Fund”. É administrado exclusivamente por Indígenas, e apoia defensores do ambiente.
Também começámos a desenvolver a Investigação Indígena, que significa o trabalho de investigação liderado pelos próprios Povos Indígenas. Estamos actualmente a trabalhar com outras organizações para desenvolver um modelo de investigação.
De momento, estamos a tentar desenvolver uma investigação sobre a domesticação do hírax. O hírax é um dos animais preferidos pelos Ogiek, e com o qual têm uma forte ligação. Porque parte do vestuário dos Ogiek é feito com pele de hírax. Por isso, receamos que, se este animal se extinguir, nunca mais ninguém saberá como fazíamos os nossos trajes, ou os nossos vestidos.
E há ainda outras iniciativas. Por exemplo, temos de ensinar as comunidades a fazer restauração florestal. Quando é que se deve cortar uma árvore? Que árvore se deve cortar? Não se pode cortar uma árvore antes do tempo. É preciso esperar que a árvore morra, antes de a podermos usar como lenha.
Por isso, se for criado este espaço e esta abertura, penso que também podemos gerir bolsas de grande dimensão, como outras organizações. Se nos for dada essa oportunidade.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Daniel, muito obrigada por ter encontrado o tempo para falar connosco hoje. É um privilégio ouvir o seu testemunho e aprender sobre os Ogiek.
E saímos desta conversa ainda mais inspirados pelo trabalho que a sua organização, a Ogiek Peoples’ Development Program, está a desenvolver. É um trabalho que exemplifica verdadeiramente de que forma as organizações e os projectos Indígenas são essenciais para a construção de um mundo com mais empatia e justiça. E com mais respeito, tanto pelo mundo natural, como pelos direitos humanos.
DANIEL KOBEI
Obrigado.
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https://ogiekpeoples.org
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Através do nosso apoio a projectos liderados por organizações Indígenas na região africana dos Grandes Lagos, e através de outros episódios deste podcast, a Azimuth World Foundation tem procurado chamar a atenção para os muitos casos de deslocação forçada enfrentados pelas comunidades Indígenas em nome da conservação, da extração de recursos ou do turismo.
As comunidades que apoiamos, como os Batwa ou os Endorois, prosperaram nas suas terras ancestrais até serem expulsas sem Consentimento Livre, Prévio e Informado. Estas comunidades, que enfrentam uma marginalização profundamente enraizada e as consequências das alterações climáticas (pelas quais, como sabemos, são as menos responsáveis), continuam a lutar pela sua sobrevivência e pela preservação dos seus modos de vida, das suas culturas e dos seus vastos e singulares conhecimentos.
Nas florestas das regiões montanhosas do centro do Quénia, os Ogiek prosperaram como caçadores-recolectores durante séculos. No entanto, desde a era colonial até aos dias de hoje, têm enfrentado repetidas vagas de invasão das terras ancestrais que desde há tanto tempo protegem. Esta situação tem colocado enormes desafios à sua sobrevivência e bem-estar. Ainda assim, a sua luta pelo reconhecimento e realização dos seus direitos tem sido uma enorme fonte de inspiração para as comunidades Indígenas de todo o mundo.
Hoje conversamos com Daniel Kobei, Diretor Executivo da Ogiek Peoples’ Development Program, que desempenhou um papel fundamental no processo judicial apresentado ao Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos, exigindo justiça para os abusos cometidos pelo governo queniano contra os Ogiek. O resultado desta batalha jurídica constitui um marco histórico, não só para os Ogiek, mas para todas as comunidades Indígenas em África que enfrentam deslocações e expulsões forçadas.
Através da OPDP, supervisionou também numerosos projectos que beneficiam as comunidades Ogiek em áreas como a governação empresarial e a capacitação institucional, a educação, a cultura, a língua, os direitos fundiários, os recursos naturais, a conservação ambiental e a justiça climática. Daniel tem uma vasta experiência na participação em fóruns internacionais decisórios e de defesa de direitos, no estabelecimento de alianças internacionais e no fortalecimento de um movimento global de defesa dos direitos Indígenas que tem ganho cada vez mais robustez e impacto.
Veja a versão em vídeo em baixo (legendas em Português disponíveis) ou faça scroll para ouvir a versão em podcast (em inglês) e para ler a versão escrita versão escrita (em português).
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Daniel Kobei, bem-vindo ao Connecting the Dots e muito obrigada por se juntar a nós hoje. Antes de nos debruçarmos sobre os muitos desafios que os Ogiek enfrentam devido à invasão das suas terras ancestrais e à expulsão forçada, poderia partilhar connosco uma visão geral das comunidades Ogiek e da prosperidade que caracterizava as suas vidas na floresta? De onde são originários os Ogiek, e onde residem atualmente? Quais são algumas das características do seu estilo de vida tradicional?
DANIEL KOBEI
Muito obrigado, Connecting the Dots. Posso dizer-vos que a comunidade Ogiek tem 52.000 indivíduos, registados no censo de 2019. E, como comunidade, consideramo-nos proprietários do complexo florestal de Mau. No ano de 1000 d.C., segundo os historiadores, migrámos da região costeira do Quénia.
Atravessámos toda a floresta, e nesse percurso alguns de nós foram assimilados. É por isso que os nossos números não são tão elevados quanto os de outras comunidades. Com a abertura da floresta aos agricultores e aos criadores de gado, entre outros, a nossa comunidade começou a deslocar-se. E acabou por se fixar no complexo florestal de Mau, que se extende por cerca de 400.000 hectares de terra.
Algumas das nossas comunidades estão no Monte Elgon, no lado ocidental do Quénia. Posso dizer que, no complexo florestal de Mau, há seis condados nos quais vivem os Ogiek: Nakuru, Narok. Kericho, Baringo, Uasin Gishu e Nandi. E os Ogiek que vivem no lado ocidental do Quénia estão em Bungoma, que fica em Chepkitale.
Créditos: OPDP
Eu tive o privilégio de crescer no complexo florestal de Mau. Fui um rapaz que fazia o seu trabalho na escola, mas também um rapaz que gostava de caçar e apanhar bagas na floresta. Lembro-me de irmos recolher mel. Especialmente nós, os Ogiek, sentimo-nos nostálgicos ao pensar nas abelhas sem ferrão. Era fácil recolher o mel, porque as abelhas não nos picavam. Infelizmente, neste momento em que falamos, as abelhas sem ferrão estão quase extintas no Quénia, devido à sobre-exploração ou à destruição da floresta por intrusos, madeireiros, pessoas que estão a agir ilegalmente.
Segundo as nossas tradições, a floresta é tudo. É essencial na forma como sempre foram praticadas as nossas cerimónias, os casamentos tradicionais, a apresentação à comunidade das crianças acabadas de nascer, os rituais de iniciação e de passagem da infância para a idade adulta. Eu costumava dizer às pessoas: “A nossa floresta é como um supermercado, porque é lá que vamos buscar tudo. Os medicamentos, os alimentos, as conchas, os materiais para construir casas”. Era esse o tipo de afinidade e proximidade que tínhamos com a floresta, estava em tudo o que possuíamos. Gostávamos do ambiente agradável. Apreciávamos a água limpa dos riachos, porque naquela época a poluição era mínima.
Como Ogiek, não sabíamos que um dia alguém ia acordar e dizer: “Vocês têm de se mudar.” Não imaginávamos que um dia alguém ia dizer: “As vossas fronteiras nesta terra não são as correctas”, que iam dizer-nos que não devíamos estar aqui, mas noutro lugar. E isso trouxe-nos até à situação actual. Muito pode ser dito sobre o complexo florestal de Mau, que é a nossa casa. Por toda a parte, é lá que reside o futuro dos Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Desde o início da era colonial, os Ogiek e outros povos caçadores-recolectores do Quénia têm sido vítimas de expropriação e expulsão das suas terras ancestrais. Daniel, pode falar-nos destes acontecimentos, das diferentes motivações que lhes estão subjacentes e da forma como culminaram em 2009, com o governo a emitir um aviso de despejo de 30 dias para os Ogiek no complexo florestal de Mau?
DANIEL KOBEI
Eu diria que se trata do despejo perene da comunidade Ogiek. Os Ogiek foram repetidamente despejados pelo governo colonial. Esse mesmo governo colonial que desde a Land Carter Commission de 1933-1934 afirmou que os Ogiek deviam ser assimilados por outras comunidades, porque não se tratava de uma população numerosa. Esses foram os primeiros despejos, os mais memoráveis, que começaram por dizer dos Ogiek: “Eles que sejam assimilados”. Porque tinham como objetivo abrir caminho para os colonos brancos, para a criação das chamadas ilhas brancas.
Seguiram-se outros despejos. Como o que aconteceu após o processo de independência, e que se iniciou quando o governo quis instalar indivíduos politicamente alinhados em Mau, removendo os Ogiek.
E depois, seguiu-se o argumento: “Queremos fazer conservação”. Esta tem sido uma das maiores motivações para os despejos. Tem sido uma arma na remoção dos Ogiek das suas terras ancestrais no complexo florestal de Mau. Isto levou a que os Ogiek sentissem que não tinham para onde ir.
Créditos: OPDP
Na verdade, no início da década de 1990, começaram também a chamar-nos todo o tipo de nomes depreciativos, como “Dorobos“, que significa “pessoas sem gado”. Costumavam dizer: “Estes são dorobos, são pobres sem gado”. Ou seja, mediam a riqueza em termos de gado, em termos da quantidade de cereais, da quantidade de colheitas que se possui. Mas os Ogiek nunca tiveram todas essas coisas.
Em 1992, o Presidente Moi, que já faleceu, decidiu que queria reservar parte da floresta para os Ogiek, porque havia um clamor em torno da inexistência de um lugar permanente para as comunidades. Os Ogiek permaneceram na floresta e tornaram-se trabalhadores do Serviço Florestal do Quénia. Depois disso, após Moi nos ter dado aquele pedaço de terra, apercebemo-nos que indivíduos exteriores à comunidade se mudavam em grande número e estavam a ocupar muita terra pertencente aos Ogiek. Em 1997, os Ogiek recorreram ao Tribunal Superior de Nairobi e obtiveram ganho de causa, tendo o governo impedido novas transacções e novas demarcações no complexo florestal de Mau.
Mas, posteriormente, o governo rejeitou a decisão do Tribunal e deixou de a respeitar. Continuou então a designar parte da terra pertencente aos Ogiek. na área onde ficaria a comunidade, e depois, em relação à outra parte, disse tratar-se de uma área para “conservação”. Nessa outra parte cedia terra para agricultura e para todo o tipo de indústrias. Noutras áreas ainda, o governo dizia que queria construir uma barragem, ou outras coisas do género.
O processo no Tribunal demorou quase 12 anos. Íamos até Nairobi. Por vezes, diziam-nos no Tribunal que “o juiz está doente. O processo desapareceu. Passa-se isto e aquilo. É por isso que o vosso caso não pode ser ouvido”. Ou seja, o processo foi sendo adiado.
Créditos: OPDP
Mas foi só mais tarde, em 2009, que comecei a intervir no assunto pessoalmente, de forma mais direta. O Serviço Florestal do Quénia lançou um aviso prévio de despejo, e os Ogiek tinham 30 dias para se mudarem. Qualquer pessoa que estivesse em Mau tinha de sair de lá. Nessa altura, já tínhamos começado a OPDP (em 1999). Por isso, eu tinha muitas ligações com outras organizações da sociedade civil. Depois telefonei ao atual Secretário Permanente dos Negócios Estrangeiros, o Dr. Korir SingOei. Liguei-lhe porque, nessa altura, ele estava a ajudar os Endorois na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Disse-lhe: “Caro amigo, os Ogiek estão em apuros. Não são só os Endorois que estão nessa situação. Os Ogiek também estão em apuros. Podemos contar com a sua ajuda? Caso contrário, não teremos para onde ir”.
Nessa altura, a comunidade Ogiek decidiu que devíamos levar o caso à Comissão Africana. Quando Korir escreveu à Comissão, esta concordou que era preciso interromper a ordem de despejo e requisitou a presença do governo queniano. Nessa altura, tínhamos um governo de coligação liderado por Raila Odinga e pelo presidente Mwai Kibaki, que já faleceu. Então, a Comissão determinou: “Parem qualquer despejo em curso dos Ogiek, até que o caso seja ouvido e haja uma decisão”.
Quando Korir regressou, houve alguns problemas de comunicação. Convoquei o Conselho de Anciãos, com 50 membros, e pedi-lhes que decidissem: “Continuamos com o caso na Comissão Africana? Ou continuamos com o caso de Nairobi?” Ou seja, o caso iniciado em Nairobi, em 1997. A comunidade decidiu: “Queremos avançar com o caso na Comissão Africana”. Nessa altura decidia-se já a admissibilidade do caso, se seria ou não aceite pela Comissão Africana. E, efectivamente, o caso foi admitido, já depois de os Ogiek me terem dado luz verde, a mim e à OPDP, para sermos a ponte entre a comunidade e a Comissão.
E foi então que comecei a liderar o processo na Comissão Africana. Demorou oito anos. Relembro que, quando lá fomos e foi feita a admissibilidade do caso, este foi aceite e foram decretadas “medidas provisórias”, que suspendiam todas as ações do governo que estavam em curso. Essas medidas provisórias foram recebidas e aceites pelo governo. Mas durante todo o processo verificou-se, novamente, muita exploração madeireira. O Serviço Florestal do Quénia estava a emitir licenças para exploração madeireira e muitas outras coisas, que continuaram a acontecer.
Créditos: OPDP
Em 2012, a Comissão Africana decide enviar o caso para o Tribunal Africano. Isto por causa daquilo a que chamamos “violações em massa”. O caso transitou então para o Tribunal Africano, onde foi dado como admissível, e começámos a apresentar depoimentos e vídeos que os substanciassem. Tudo o que nos ajudasse a provar o nosso caso acima de qualquer dúvida.
E em 2014, teve lugar a audiência em Adis Abeba. Nessa altura, 26 Ogiek foram até Adis Abeba. E o nosso caso foi ouvido nos dias 28 e 29 de novembro de 2014. Então, durante esses dois dias, tivemos dois Ogiek, uma mulher e um homem, que foram testemunhas. E contámos também com o testemunho de uma especialista, a Dra. Liz Alden, que participou e partilhou uma opinião independente sobre o historial da presença dos Ogiek em Mau. Os Ogiek não foram para Mau. Eles estavam em Mau, quando o governo queniano e os colonos brancos travaram conhecimento com os Ogiek. Ou seja, os Ogiek não se mudaram para Mau, pelo que devem ser autorizados a lá permanecer, é a sua terra ancestral. Não são responsáveis pela destruição. O governo queria provar que “os Ogiek foram responsáveis pela destruição da floresta”. Mas no julgamento de 2017 ficou provado para além de qualquer dúvida que nada apontava para que os Ogiek fossem a causa da destruição da floresta, ou a causa da desflorestação de Mau. No seio do governo sabia-se que a comunidade Ogiek vivia lá, e que nada de errado havia ocorrido até às ações do governo. Eu disse-lhes: “Os Ogiek não têm fontes de energia. Não têm tractores ou bulldozers, capazes de cortar e transportar árvores, nem camiões para as transportar.”
E o caso prosseguiu. Em 2015, o Tribunal Africano solicitou ao governo do Quénia e à comunidade Ogiek aquilo a que chamamos de “acordo amigável”, pediu que negociássemos. Mas o governo não veio preparado para esse processo. Pôs condições muito rigorosas. Uma dizia que: “Têm de ter uma certidão de nascimento. Têm de se registar como sendo Ogiek”. Eu respondi: “Por que é que havemos de nos registar enquanto Ogiek, se já somos Ogiek? Porque é que temos de ter uma certidão de nascimento?” Pessoalmente, nunca tive uma certidão de nascimento até 1990, quando viajei de avião pela primeira vez, e não era fácil para um queniano obtê-la. Só se tornou mais fácil há pouco tempo, quando se tornou obrigatório que as crianças pequenas tivessem uma certidão de nascimento. Ou seja, não se podia estar a exigir aos Ogiek algo que não era exequível. Depois disseram: “Não queremos que um branco seja advogado da comunidade Ogiek”. Também disseram: “Não queremos que a Comissão Africana represente os Ogiek.” Mas quando esta estratégia se tornou clara, o tribunal disse: “Não. Se é assim que vão actuar, não podemos continuar com este vai e vem. Por isso, vamos avançar para julgamento”.
Créditos: OPDP
Então, no dia 26 de maio de 2017, o caso foi decidido a favor dos Ogiek. Decidiu-se que as suas acusações tinham mérito. Foi afirmado que os Ogiek são os Povos Indígenas ancestrais do Quénia, que são os proprietários de Mau e que não se deveria repetir qualquer forma de despejo. Infelizmente, a decisão não foi respeitada. Nessa altura, o Tribunal ficou aquém daquilo a que chamamos “reparações”.
A 23 de junho de 2022 foi emitida uma nova sentença, que desta vez incluiu o tema das reparações, e esta foi novamente a favor da comunidade Ogiek. Alguém me perguntava: “Como é que conseguiu?” A verdade é que eu tinha estabelecido aquilo a que se chama um “mecanismo de feedback”, através do qual me assegurei que a comunidade Ogiek me dava informações. Quando recebia uma carta do Tribunal, da Comissão, ou dos advogados, tinha de realizar fóruns públicos e informar a comunidade. E eles voltavam a dizer: “Continua, continua”. Porque, nessa altura, nunca quisemos que a comunidade não soubesse o que se passava. A comunidade tinha de saber tudo. Este caso é deles. Não é o caso do Daniel. É o caso dos Ogiek. Por isso, essa ligação é essencial.
E para além disso, outra vantagem que tivemos durante o processo foi o apoio das mulheres. As mulheres não têm medo, felizmente. As mulheres são muito fortes, muito determinadas. Continuaram a apoiar-nos, a dar-nos uma enorme motivação. Durante as reuniões com a comunidade, ouvimos belas canções folclóricas motivacionais, que nos diziam para continuarmos a lutar pelos nossos direitos à floresta de Mau. Porque é lá que estão os nossos antepassados. Foi lá que os nossos antepassados foram enterrados. Temos essa ligação com eles, todas as nossas vidas dependem disso.
Durante o período que antecedeu a audiência sobre reparações, voltaram a suceder-se os atrasos, entre 2017 e 2022. Durante cinco anos. E esse foi outro problema, porque apareceu a COVID e começaram a dizer-nos que: “Não, não podemos ouvir-vos online. Não podemos, porque as testemunhas ficarão comprometidas”. E isso também atrasou tudo.
Agora, no ano passado, em 2023, depois de termos começado a trabalhar com o governo, a tentar fazer esta ou aquela iniciativa com o governo, no dia 1 de novembro, voltou a acontecer um despejo. E este acontecimento foi também motivado pelo facto de ter havido aquilo a que se chama, penso eu, a Cimeira Africana sobre o Clima, e o governo quis mostrar serviço, quis afirmar-se como campeão da proteção florestal. E penso que isso levou o Presidente a exigir a toda a gente que se fosse embora. E em algumas das nossas comunidades, num local chamado Sasimwani, foram removidas 700 pessoas. Neste preciso momento, essas pessoas estão sem terra. Estão na rua. Precisam de comida, precisam de abrigo. Foram alugar pequenos quartos num centro chamado Ololkirkiria. Mas neste momento os seus filhos não estão na escola. Não sabem o que fazer.
E durante este processo, vieram dizer-nos que: “Há um plano para os mercados de carbono e para os créditos de carbono”. E nós perguntámos: “E o que é que isso envolve? Nós não estamos informados.” Porque essa questão do carbono, que permite a uns poluírem, enquanto outros tentam sanear, ou tentam compensar, tudo isso são coisas que não achamos muito interessantes. Portanto, até ao momento, houve muito pouca implementação das decisões deste caso. E não só isso, como temos enfrentado outros desafios.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Como descreveu, a 1 de novembro de 2023 verificou-se uma nova expulsão. Casas foram destruídas, incendiadas, e vidas foram destruídas. O que acha que é necessário para que a decisão do Tribunal Africano seja de facto implementada?
DANIEL KOBEI
Realmente, é algo de terrível. Um dos casos determinou que devia haver uma indemnização de 157.800.000 KES à comunidade Ogiek. E disseram-nos: “Sim, podemos pagar. Mas o Procurador-Geral não nos deu luz verde.” Porque é que o Procurador-Geral não assume as suas responsabilidades? Mas, no final de contas, cabe ao Presidente fazê-lo. É o presidente do Quénia que deve reunir a sua equipa e dizer-lhes que implementem as decisões do caso dos Ogiek.
Queremos apenas a pedir à comunidade internacional que apoie os Ogiek. E àqueles que têm redes de contactos, ou que têm voz junto do governo queniano, que falem com os membros do governo e lhes digam que é importante dar aos Ogiek a oportunidade de regressarem a casa, e que devem implementar à letra as decisões do caso dos Ogiek. E que sejam dadas garantias de que os Ogiek serão protegidos de qualquer tipo de violação.
E neste momento deve também haver confiança nas competências da comunidade Ogiek para levar a cabo a proteção da floresta. Por isso, não lhes deve ser negado esse papel, de proteção e conservação da floresta, porque os Ogiek sabem desempenhá-lo. Está nas suas tradições. Por isso, os conhecimentos tradicionais dos Ogiek em matéria de conservação devem ser utilizados e deve ser-lhes dada uma oportunidade.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Muitos especialistas fizeram notar que este último despejo foi provavelmente levado a cabo para garantir que o governo queniano tem autoridade sobre as terras a serem incorporadas em mercados de carbono. Sabemos também que o governo queniano assinou recentemente um significativo acordo de compensação de carbono com a Blue Carbon, por exemplo.
E tudo isto está a acontecer ao mesmo tempo que os Povos Indígenas são cada vez mais reconhecidos internacionalmente como os administradores mais eficazes dos ecossistemas florestais e da biodiversidade. Pode dizer-nos que lições o caso da comunidade Ogiek tem para o mundo, no que se refere aos perigos associados às falsas soluções climáticas? E como é que as comunidades Indígenas são particularmente vulneráveis a estas soluções de transição verde que não respeitam os direitos humanos?
DANIEL KOBEI
Esta é uma solução climática forçada. A comunidade está a ser forçada a aceitar uma solução climática que não é favorável ao seu estilo de vida. Como muitas outras comunidades, onde planos destes estão em curso, desenhados sem qualquer consulta – nem mesmo Consentimento Livre, Prévio e Informado – ou sem qualquer partilha de benefícios, do que é acumulado com os chamados créditos de carbono e com tudo o resto.
Mas a minha mensagem para o mundo é que, ao encontrarem este tipo de informação, estes projetos que estão a surgir em nome das soluções climáticas, ou das alterações climáticas, tenham muito cuidado. Porque estes podem vir a custar-vos as vossas terras e territórios. Porque a maioria das áreas que estão a ser visadas nestes projetos são terras e territórios dos Povos Indígenas. Isto significa que os Povos Indígenas e as comunidades locais devem permanecer vigilantes em relação às suas terras. Caso contrário, podem ser forçados a adoptar certas soluções climáticas, tal como testemunhámos com a comunidade Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Um dos outros obstáculos que os Ogiek têm enfrentado é a recusa do governo queniano em reconhecer-vos como Povo Indígena. Pode falar-nos dos impactos desta política governamental para os Ogiek, e de como isso pesa na visibilidade e reconhecimento dos Ogiek por parte de outros quenianos?
DANIEL KOBEI
A Constituição atual tem uma secção muito breve que fala sobre os Povos Indígenas. E descreve os Povos Indígenas como sendo historicamente caçadores-recoletores ou pastoralistas. Por isso, as outras comunidades acreditam que estes são Povos Indígenas, mas dizem: “Porque é que lhes devem ser dados privilégios especiais?” Nós, por exemplo, não somos tão instruídos como as outras comunidades. Estamos ainda atrasados noutras áreas. Por isso, não é possível aplicar os mesmos critérios.
E apesar de o grupo de trabalho da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos ter elaborado uma lista dos Povos Indígenas do Quénia, os governos não a aceitaram, nem disseram: “Estes são os Povos Indígenas do Quénia e devem ser protegidos”.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
E como é que acha que os jovens estão a lidar com isso? Sei que trabalha muito de perto com os jovens. Como é que eles vêem o seu futuro nas comunidades?
DANIEL KOBEI
Em primeiro lugar, a maioria dos jovens está agora interessada em avançar os seus conhecimentos, ou seja, a exigir mais conhecimentos sobre tecnologia. E muito poucos estão realmente interessados em lutar pelo modo de vida Indígena. Isto acontece porque foram privados de compreender as suas culturas. Foram privados de saber que somos diferentes das outras culturas. Ou seja, há esta pressão para dizermos que somos todos iguais, que não somos diferentes, mas as comunidades continuam a sofrer.
Como Ogiek, o que temos estado a fazer é registar e arquivar a nossa língua, para que os jovens tenham acesso. Estamos a ensinar os mais velhos a ler e a escrever. Porque há muita gente do nosso Povo que não sabe ler nem escrever. Por isso, começámos a fazê-lo no nosso Centro. E depois, em relação àqueles que perderam a língua, que já não falam a nossa língua, estamos a tentar ensiná-los a falar a língua Ogiek.
Para que eles façam parte da nossa luta. Porque aqueles que estão interessados em conhecer a língua Ogiek, em conhecer melhor as culturas, vêm facilmente em nossa defesa. Mas quando nem sequer estamos interessados em conhecer a língua, em conhecer a cultura, então já não há hipótese, e estamos totalmente assimilados.
De facto, o que fizemos foi ir mais longe e começar a escrever na língua Ogiek. E fazemos até concursos para os jovens. Isto faz com que eles se interessem mais na aprendizagem sobre os Ogiek. Porque isso está a ser escrito, está a ser falado. Alguns jovens, rapazes e raparigas, já começaram a escrever poesia, a declamar poemas na língua Ogiek. E a música também é fundamental na tentativa de promover a língua Ogiek.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Pode falar-nos mais sobre a história, as áreas de intervenção e os principais projectos levados a cabo pela Ogiek Peoples’ Development Program?
DANIEL KOBEI
Um dos nossos marcos é, sem dúvida, termos levado a comunidade a conseguir os dois veredictos históricos em tribunal.
Outro marco tem sido a reabilitação da floresta destruída. É difícil acreditar, mas já plantámos 1,6 milhões de árvores nativas em Mau, desde 2016, e que já são hoje árvores grandes. E só este ano já conseguimos começar a trabalhar com alguns parceiros e estamos novamente a plantar árvores nativas, cerca de 20 000. Queremos no próximo ano chegar às 80 000 árvores. Estamos a trabalhar de forma tripartida, com a comunidade, a OPDP e o Serviço Florestal do Quénia, para reabilitar o complexo florestal de Mau. Porque, apesar de estarmos a lutar pelos direitos à terra, não queremos ter uma terra estéril. Precisamos que na nossa terra prospere a floresta, para que consigamos viver nela.
Créditos: OPDP
Também demos início a outros projectos, como o projeto de painéis solares. Conseguimos fornecer painéis solares a mais de cem famílias. Isto porque alguns dos desafios que temos nas aldeias prendem-se com a inexistência de eletricidade. Certas comunidades nunca tiveram acesso a eletricidade. Por isso, com o apoio dos nossos parceiros, providenciámos painéis solares a famílias vulneráveis.
E conseguimos também criar o Centro Cultural Ogiek, que é um dos grandes sucessos da OPDP. Estamos a falar de um projeto com um custo superior a 250.000 USD. E no Quénia esse é um valor substancial, para construir um centro. Fica num terreno de 5 acres, que adquirimos efetivamente. Porque sempre que queríamos criar o centro, os Serviços Florestais do Quénia levantavam problemas connosco.
E agora existe, o Centro. E alberga um museu. E também um herbário, onde damos formação aos jovens que estejam interessados em saber mais sobre plantas medicinais. Muitas pessoas interessaram-se pela pelas plantas medicinais depois da COVID.
Créditos: OPDP
Estamos também a trabalhar com alguns dos nossos colaboradores e parceiros, e já conseguimos entregar bolsas de estudo a 24 raparigas Ogiek. Que são necessárias, tendo em conta o casamento e a gravidez precoce, entre outros desafios.
Mas, acima de tudo, desenvolvemos um projeto muito concreto de subsistência, para mulheres Ogiek. As mulheres escrevem pequenas candidaturas e nós damos bolsas, para que possam ter a sua própria fonte de rendimento. E isto também tem funcionado bem, e muitas das mulheres apoiadas têm agora a sua própria fonte de rendimento, resultantes dessas candidaturas. Alugamos tendas para algumas mulheres. A outras fornecemos ovelhas, ou fornecemos vacas.
Isto permite-lhes sustentar as suas vidas no dia-a-dia. Porque, como eu costumo dizer, as pessoas não podem comer direitos humanos. Não podes falar às pessoas simplesmente de direitos humanos. Elas responder-te-ão: “Sim, já ouvi falar de direitos humanos. Mas o que é que eu vou comer? Como ponho comida na mesa?” Por isso, estamos também a criar estas iniciativas, e a lançar oportunidades para jovens e mulheres desenvolverem projectos de subsistência.
Também estabelecemos muitas redes entre as comunidades de caçadores-recolectores no Quénia. São seis comunidades: os Yaaku, os Sengwer, os Ogiek do Monte Elgon, os Aweer, os Wayyu e os Waata. E também trabalhamos com redes em África. Estamos actualmente a acolher a International Land Coalition, no âmbito da Plataforma Regional sobre Povos e Territórios Indígenas em África. Nós, enquanto OPDP, somos os anfitriões. E estamos a trabalhar com 15 países em África. E temos ainda estreitas relações de trabalho com muitas organizações no Quénia, e com outros parceiros internacionais.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
O que torna as organizações e os projectos Indígenas tão eficazes? E por que razão deveriam as organizações Indígenas receber mais financiamento direto?
DANIEL KOBEI
Vou falar da minha experiência pessoal, porque estou no movimento há quase 25 anos. E houve uma altura em que meu trabalho estava a ser apoiado por certas organizações não Indígenas. E chegou uma altura em que eu tive de dizer: “Não”. Tive de dizer a alguns parceiros: “Se não estão a apoiar-nos diretamente, fiquem com o vosso dinheiro”.
Porque, às vezes, somos obrigados a fazer coisas que não fazem sentido para nós. Quando o o financiamento é direto, usamo-lo em benefício das nossas comunidades. Mas quando vem através de terceiros, estes intermediários usam parte do financiamento para os seus próprios custos administrativos. Quando finalmente chega até nós, o financiamento é muito reduzido, não tem qualquer impacto. Mas quando se apoia diretamente os Povos Indígenas, eles usam os recursos e geram resultados.
E há já muitos casos, como acontece com a OPDP neste momento, em que é depositada muita confiança por parte das organizações internacionais que querem apoiar. A auto-governação está a par da auto-determinação. No momento em que nos financiam diretamente, estão a fortalecer a nossa auto-determinação. E, assim, podemos fazer as coisas à nossa maneira e com confiança. Dessa forma, seremos também capazes de criar as nossas próprias estruturas de governação.
Créditos: OPDP
E, pessoalmente, sou agora um dos coordenadores do fundo de emergência “Indigenous-led Security Fund”. É administrado exclusivamente por Indígenas, e apoia defensores do ambiente.
Também começámos a desenvolver a Investigação Indígena, que significa o trabalho de investigação liderado pelos próprios Povos Indígenas. Estamos actualmente a trabalhar com outras organizações para desenvolver um modelo de investigação.
De momento, estamos a tentar desenvolver uma investigação sobre a domesticação do hírax. O hírax é um dos animais preferidos pelos Ogiek, e com o qual têm uma forte ligação. Porque parte do vestuário dos Ogiek é feito com pele de hírax. Por isso, receamos que, se este animal se extinguir, nunca mais ninguém saberá como fazíamos os nossos trajes, ou os nossos vestidos.
E há ainda outras iniciativas. Por exemplo, temos de ensinar as comunidades a fazer restauração florestal. Quando é que se deve cortar uma árvore? Que árvore se deve cortar? Não se pode cortar uma árvore antes do tempo. É preciso esperar que a árvore morra, antes de a podermos usar como lenha.
Por isso, se for criado este espaço e esta abertura, penso que também podemos gerir bolsas de grande dimensão, como outras organizações. Se nos for dada essa oportunidade.
Créditos: OPDP
MARIANA MARQUES
Daniel, muito obrigada por ter encontrado o tempo para falar connosco hoje. É um privilégio ouvir o seu testemunho e aprender sobre os Ogiek.
E saímos desta conversa ainda mais inspirados pelo trabalho que a sua organização, a Ogiek Peoples’ Development Program, está a desenvolver. É um trabalho que exemplifica verdadeiramente de que forma as organizações e os projectos Indígenas são essenciais para a construção de um mundo com mais empatia e justiça. E com mais respeito, tanto pelo mundo natural, como pelos direitos humanos.
DANIEL KOBEI
Obrigado.
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