Connecting the Dots com Fundos Indígenas (Podáali, FIRN e IFIP)
Uma conversa com dois Fundos Indígenas da Amazónia brasileira, o Podáali e o FIRN, e com a International Funders for Indigenous Peoples, responsável pelo secretariado da Aliança Global de Fundos Indígenas.
Enquanto organização aliada dos Povos Indígenas, apostada em apoiar exclusivamente projetos de pequenas organizações de base, a Azimuth World Foundation tem tido a oportunidade de constatar de perto as inúmeras barreiras que as comunidades Indígenas encontram no acesso a mecanismos de financiamento para os seus projetos.
Esta é uma realidade alarmante, tendo em conta os enormes desafios que as comunidades Indígenas um pouco por todo o mundo enfrentam. Desafios provenientes do legado destrutivo do colonialismo, ou da continuação das práticas coloniais até aos dias de hoje, que exercem enorme violência e marginalizam estas comunidades. Desafios relacionados com os padrões de consumo do Ocidente, que levam a um extrativismo selvagem em territórios Indígenas e que são responsáveis pelas alterações climáticas, sentidas em primeiro lugar, e de forma mais intensa, nos territórios das próprias comunidades Indígenas. Mas é igualmente claro o papel fulcral que as soluções oriundas das cosmovisões, modos de vida e conhecimento tradicional Indígenas desempenham na luta contra as crises climática e da biodiversidade. Que perante este panorama, apenas 0,6% das doações de fundos globais cheguem às comunidades Indígenas é avassalador e exige uma reflexão profunda.
Este número foi divulgado num relatório recentemente comissionado pela International Funders for Indigenous Peoples (IFIP), uma rede de financiadores Indígenas e não-Indígenas, dedicados a apoiar diretamente comunidades Indígenas, e da qual a Azimuth se orgulha de fazer parte. Uma rede que está profundamente apostada num caminho de descolonização da filantropia: através do qual se possam desbloquear as barreiras que impedem o acesso destas comunidades a financiamento direto; através do qual seja reforçado significativamente o apoio global às comunidades Indígenas; através do qual se altere a dinâmica de financiamento para uma promoção total da auto-determinação dos Povos Indígenas, onde as necessidades e aspirações das comunidades definam o desenho e a gestão dos projetos. Um dos elementos centrais nesta procura de uma filantropia mais justa, eficaz e humana é o fortalecimento dos Fundos Indígenas.
Tal como as comunidades Indígenas elas mesmas, os Fundos Indígenas caracterizam-se por uma enorme diversidade, e cada Fundo tem os seus aspetos únicos. Tendo em mente a impossibilidade de uma definição rígida, o Grupo de Trabalho de Fundos Indígenas organizado pela IFIP chegou à seguinte definição: “Os Fundos Indígenas são guiados por cosmovisões Indígenas. São liderados por, e dirigidos aos Povos Indígenas. São fundos que fortalecem a auto-determinação e apoiam processos de empoderamento das comunidades, tanto a nível local como global, para que estas sejam capazes de mudar os paradigmas e as relações de poder, levando a que assimetrias de poder e recursos possam dar lugar ao reconhecimento e à reciprocidade”.
Os Fundos Indígenas são hoje uma realidade incontornável, e o seu trabalho merece ser amplamente reconhecido. E por isso, deixa-nos imensamente felizes ter hoje connosco Claudia Soares Baré, Diretora Secretária do Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, Josimara Melgueiro de Oliveira, Coordenadora do Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN) entre 2021 e 2024, e Monica Wigman, que coordena a área de Fundos Indígenas da IFIP. Três testemunhos que temos a certeza nos ajudarão a compreender melhor a importância crucial dos Fundos Indígenas, muito particularmente no Brasil.
Veja a versão em vídeo em baixo, ou faça scroll para ouvir a versão em podcast ou ler a versão escrita.
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Crédito: FIRN
MARIANA MARQUES
Claudia, Josimara, Monica, bem-vindas! Como referi na introdução, é muito difícil chegar a uma definição fechada do que são os Fundos Indígenas. Claudia e Josimara, poderiam ajudar-nos a definir um pouco melhor o Podáali e o FIRN?
CLAUDIA SOARES
Bom dia, obrigada pelo convite. O Podáali está sempre à disposição para estar participando e divulgando um pouco mais sobre esse mecanismo inovador, que é um mecanismo financeiro da Amazónia brasileira.
O Podáali foi criado por Indígenas, para Indígenas e com gestão Indígena. A sua construção foi conduzida pela COIAB, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. E nós somos essa conquista do movimento Indígena na Amazônia e seus parceiros. Caminhamos juntos nas construções, e servimos como captadores de recursos para apoiar os Povos, comunidades e organizações Indígenas.
Nós surgimos como uma resposta urgente à crise enfrentada pelas comunidades Indígenas em todo o território da Amazônia brasileira. Os nossos territórios, eles sofrem, com falta de recursos, apoios adequados. Com várias consequências: a própria degradação ambiental, perda de territórios ancestrais, a violação dos direitos humanos fundamentais.
Então, o Podáali foi criado com uma missão de promover e fortalecer a autonomia, os direitos Indígenas, a gestão territorial e ambiental, sendo essa referência na captação, gestão e repasse dos recursos para os Povos, comunidades e organizações Indígenas na Amazônia brasileira.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA (BARÉ) – FIRN, RIO NEGRO INDIGENOUS FUND
Purãga ara, parentes. Purãga ara, parenta Cláudia, também do Povo Baré. Eu me chamo Josimara. Também sou do Povo Baré. Eu falo aqui do noroeste amazônico, do município chamado São Gabriel da Cachoeira. Tríplice fronteira, ali com a Colômbia e Venezuela. Fui coordenadora do Fundo Indígena do Rio Negro entre 2021 e 2024, o qual tenho muito orgulho de dizer que é um fundo também criado por Indígenas, por essa luta do movimento Indígena aqui no rio Negro. Nós costumamos dizer que o fundo, o FIRN, ele é fruto da luta também do movimento Indígena do Rio Negro por terra e cultura.
A gente iniciou nossas atividades em 2021, criando uma equipe específica Indígena para operar esse fundo, sendo o primeiro fundo Indígena a apoiar diretamente comunidades através de editais. Nós atuamos atualmente em 12 Terras Indígenas, numa área de mais ou menos 23 milhões de hectares, abrangendo três grandes municípios aqui do Amazonas: Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira. O nosso território é o território de abrangência da FOIRN, que é uma organização extremamente reconhecida no Brasil, pelo movimento Indígena. É uma organização base que tem 37 anos de história e atuação.
A gente trabalha aqui com 23 Povos Indígenas. A gente continua resistindo, apesar das invasões, apesar de todos os ciclos de exploração que a gente vem sofrendo durante todo esse tempo. A gente segue resistindo. A gente segue lutando pelos nossos direitos.
A nossa missão é promover o bem viver e a gestão territorial dos nossos Povos, aqui no Rio Negro. Através de projetos elaborados pelas comunidades, e geridos também pelas próprias comunidades. O nosso primeiro edital, ele foi lançado em 2021. Atualmente, o FIRN está executando o seu segundo edital, com uma experiência muito proveitosa e muito desafiadora.
Crédito: FIRN
MARIANA MARQUES
Os Fundos Indígenas são um elemento essencial no movimento para descolonizar a filantropia e defender a autodeterminação dos Povos Indígenas. Na vossa opinião, que barreiras enfrentam as comunidades Indígenas no acesso aos mecanismos tradicionais de financiamento? E o que é que torna únicos os fundos Indígenas, e de que forma é que eles permitem às organizações de base Indígenas ultrapassar essas barreiras?
CLAUDIA SOARES
Dentro da própria discussão do movimento Indígena a nível da Amazônia, historicamente, os Territórios Indígenas, eles enfrentam barreiras. Como a própria burocracia excessiva. A falta na própria informação sobre oportunidades de financiamento também é uma barreira, ainda. O preconceito, a desconfiança, por parte dos próprios financiadores em relação a recursos serem executados. Isso são algumas das barreiras.
Então, os fundos Indígenas, assim como o Podáali, acredito que o FIRN, eles são únicos. Primeiro, porque são geridos por Indígenas. E isso o que quer dizer? Que estamos focados em fortalecer a autonomia das comunidades, dos nossos territórios. Porque nós somos pertencentes a ele. Nós entendemos como que funciona, a nossa organização social, os nossos trabalhos.
E porque também esses fundos Indígenas, eles vão aí oferecer financiamento de forma mais acessível, e que respeitam as cosmovisões Indígenas, facilitando aí o desenvolvimento de seus projetos de vida, que atendem também as necessidades reais de seus territórios.
A gente coloca, aqui no Podáali, que quando nós falamos em autodeterminação, ou autonomia dos territórios, para gerenciar, para gerir ou executar esses projetos de vida, com isso nós não queremos dizer que nós vamos formar profissionais para execução de projetos. Não, a gente não está olhando por esse lado. Nós estamos falando e mostrando que os próprios territórios, eles têm, sim, capacidade de gerenciar ou de gerir recursos para as necessidades que estão ali, no chão daquele território.
Crédito: Podáali
Então, essas barreiras que eu coloquei logo no início, aos poucos elas estão sendo ultrapassadas. E isso, a gente consegue medir com os primeiros editais que nós fizemos. Também o Podáali, em 2023, executou o seu primeiro edital. Com um recurso de, mais ou menos, 1.600.000 reais. Pequeno, ainda. Muito com o intuito mesmo de nós todos aprendermos a lidar com isso, porque é uma novidade. O movimento Indígena está trabalhando diretamente com o financiamento.
Eu posso dizer que nós somos doutores, experts, na incidência política pela demarcação da terra, pela saúde, pela educação. Então, essa incidência política, nós temos muita segurança em relação a isso. E com o financiamento, agora, nós também queremos ser doutores nisso. Nós queremos ter segurança. Mas, para isso, a gente coloca muito a questão do tempo Indígena. Porque ao mesmo tempo que nós estamos executando todas essas atividades, todas essas tarefas, nós também estamos aprendendo. Aos poucos, nós estamos nos aperfeiçoando.
E, aos poucos, nós ganhando essa confiança dos financiadores do Podáali. Mas também a confiança dos territórios. Porque os territórios precisam de confiar no Podáali, que essa exigência de burocracia pare aqui, conosco. E que haja essa facilidade de acesso, para que os territórios consigam executar os seus projetos de vida.
E que cada vez mais esses recursos possam potencializar. Porque esses trabalhos, todos esses projetos de vida, eles já são feitos diariamente nos territórios. Mas com recursos financeiros direcionados para isso, eles vão potencializar ainda mais o trabalho que está sendo feito. Tanto de sustentabilidade, de manter propriamente a floresta em pé. De cuidar dos rios, quando a gente fala “Não” ao garimpo ilegal. A própria soberania alimentar, para que os nossos peixes, as nossas carnes, continuem saudáveis.
Então, a gente tem conseguindo ultrapassar, de facto, essas barreiras que estão aí à vista dos fundos Indígenas, de modo geral.
Crédito: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Tem uma frase que uma parenta nossa fala, que é: “Quem melhor do que nós mesmos para falar de nós mesmos?” Então, é um grande diferencial dos fundos Indígenas, como a Claudia trouxe. Essa cosmovisão, que é só nossa, que só nós entendemos. Os nossos territórios, eles têm especificidades e particularidades que só nós sabemos. Então, como é importante ter fundos Indígenas, liderado por Indígenas, que entendam toda visão mais sensível. Nós temos uma visão técnica, ao mesmo tempo que a gente também tem uma visão sensível ao nosso território.
Um outro ponto, que eu gostaria de mencionar como uma barreira que a gente quebra, é a nossa própria relação com o território. Nós, fundos Indígenas, a gente tem uma relação muito diferente. E nós costumamos dizer que os fundos Indígenas foram criados para chegar nos lugares que os outros fundos não chegam. Para chegar na ponta. Para chegar naquelas comunidades onde não se tem uma personalidade jurídica, não se tem uma estrutura jurídica. Que não falam nem escrevem português. Então, nós, como fundos Indígenas, podemos criar estratégias para chegar nesses territórios.
Então, a gente incentiva a autonomia, ao mesmo tempo que a gente se preocupa muito com a relação de tutela, também. O quanto esses territórios, eles estão preparados ou não para receber esse financiamento. E como nós podemos ajudá-los.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Tanto o Podáali, como o FIRN, trabalham com organizações comunitárias Indígenas na região da Amazônia. E será que poderiam partilhar connosco alguns exemplos dos projetos que são apoiados pelos vossos fundos, e contar-nos, também, um pouco mais sobre a forma como estes projetos são baseados na defesa da autodeterminação das comunidades?
CLAUDIA SOARES
O Podáali apoia projetos em 8 linhas temáticas, 8 eixos principais. E esses eixos, eles estão alinhados com as diretrizes da COIAB, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Alinhado também com os ODS. E com a PNGATI, que é uma política nacional sobre Terras Indígenas.
E essas linhas temáticas, elas estão então envolvidas com a gestão e proteção territorial e ambiental Indígena, a economia sustentável e soberania alimentar, fortalecimento institucional e promoção de direitos, educação Indígena e formação profissional, medicina ancestral e saúde Indígena, fortalecimento cultural e conhecimentos tradicionais Indígenas, gênero, gerações e pessoas Indígenas com deficiência, e a garantia de direitos dos Povos Indígenas isolados.
Nós trabalhamos tanto com organizações Indígenas que têm uma personalidade jurídica ativa, como também nós temos projetos com os grupos coletivos, como nós chamamos, que são aqueles grupos que não têm personalidade jurídica. Que de repente é um grupo de jovens, é um grupo de parteiras, é um grupo de professores, grupo de mulheres.
Nós estamos aí numa execução de projeto, através de premiação, no território Xavante. Então, essa premiação foi construída conjuntamente com os Xavante. O Podáali tem as suas normativas, de como são feitos os repasses para os territórios. E aí, através de editais, ou através de carta convite, ou através de demanda espontânea, onde a premiação está inserida. Então, eles escolheram essa forma de premiação, de repasse, para que as 14 etno-regiões pudessem receber um recurso financeiro, que eles próprios conseguiram fazer a captação. Então, a forma como foi feita a inscrição, foi feito o repasse, tudo foi feito através dessa construção com os Xavante, e eles definiram qual seria a melhor forma de que esses recursos pudessem chegar para o território deles.
Então, dentro do território Xavante, com esse apoio do Podáali, ele não apenas protege as Terras Indígenas contra invasões ilegais, mas também implementa práticas de manejo sustentável da terra. Que foi isso que foi trazido por eles, e foi nesse sentido que foi trabalhado.
Image Credit: Podáali
Ao mesmo tempo, nós temos projetos, por exemplo, que ajudam, ou que potencializam, que implementam projetos de vida, em relação a demarcação de Terras Indígenas. Então, hoje nós já temos esse projeto em execução, onde organizações Indígenas dos territórios fazem parceria com o próprio Podáali, para que ajude na demarcação física dos seus territórios. Porque hoje, no Brasil, nós temos um discurso muito forte, ainda, de que o Estado brasileiro não tem recursos para fazer os trabalhos, por exemplo, de demarcação.
Esses pontos, esses elementos importantes, dentro do Podáali, que a gente consegue fazer hoje. Porque ele foi construído pelos Povos Indígenas. Então, quando ele foi construído, nós tivemos tanto representantes, lideranças, que já estavam inseridos dentro do movimento Indígena, como também foram trazidas lideranças jovens. E aquelas lideranças que estavam iniciando, que nunca tinham participado do movimento. Então, quando foi construído o Podáali, foram trazidos todos esses personagens, para que pudessem pensar juntos como é que nós queríamos que esse mecanismo financeiro pudesse funcionar, e que pudesse realmente chegar aos territórios.
E aí, com isso, eu digo que tanto os próprios territórios, que são dos maiores captadores de recursos, no caso do Podáali, como também as próprias lideranças que fazem parte da nossa governança, são captadoras de recursos, como também a própria diretoria executiva é um captador de recursos. Então, todos nós estamos trabalhando em conjunto, para que esses recursos, sejam eles financeiros ou de outras formas, eles possam chegar, e que eles possam – mais uma vez eu uso a palavra – potencializar o trabalho que já é feito.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Nós temos algo, também, que eu sempre gosto de levantar, para esses projetos especificamente na Amazônia. É o custo da Amazônia. O acesso a esses locais, a esses territórios. Que muitos fundos não entendem, como é difícil o deslocamento, o acesso. Os próprios insumos, a chegarem para esses territórios para poderem esses projetos serem implementados.
Nós nos atentamos e nos importamos muito com essas dificuldades. A gente foi criado em cima dessas dificuldades. Então, esses projetos, eles poderiam enfrentar, com outros fundos, exatamente essa falta de entendimento. O quanto eles têm uma importância para o seu território, mas pode ser que não tenha tanta importância para aquela chamada, ou para aquele edital.
Eu posso mencionar, por exemplo, a revitalização, o resgate da plantação de crajiru, que é uma planta medicinal. Que é uma planta tradicional para o nosso Povo, e que estava se perdendo, estava ficando quase extinta, aqui dentro do nosso território. Então, para a gente, quando a gente recebeu esse projeto, foi um projeto muito bonito, que de prontidão a gente resolveu apoiar.
Eu poderia mencionar, também, que a diferença entre fundos Indígenas e outros fundos, é, como eu já mencionei, a relação que a gente tem com essas associações, com essas organizações. Nós temos monitoramento. Aqui no FIRN, nós temos o monitoramento. Eu diria que é um ponto-chave para que nosso fundo tenha tanto sucesso. Nós monitoramos esses projetos, nós apoiamos o desenvolvimento das atividades, nós orientamos. E também estamos ali, ao lado, de maneira muito técnica, desenvolvendo, apoiando, facilitando o desenvolvimento das atividades dentro do território.
Nós não apenas repassamos recursos. Isso é muito importante que seja dito. Nós não somos só repassadores de recurso. Nós viemos também para facilitar esse processo. Para que os territórios e essas pequenas organizações se sintam apoiadas, de facto. Isso é muito importante. Isso é um detalhe muito importante, para nos diferenciar de outros fundos.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Eu agora queria trazer um pouco da atualidade política brasileira para esta conversa, também. Nós sabemos que, desde a eleição do presidente Lula, tem havido um grande reforço da presença Indígena a nível institucional. Não só foram eleitos um número recorde de deputados Indígenas para o Congresso, como o próprio Presidente criou o Ministério dos Povos Indígenas, liderado pela Sônia Guajajara, líder Indígena, e nomeou também a primeira mulher Indígena para a presidência da FUNAI, Joênia Wapichana. No entanto, há múltiplos relatos que nos chegam todos os dias, ainda, sobre os desafios que as comunidades Indígenas no Brasil continuam a enfrentar, mesmo depois de terminada a governação tão destrutiva de Jair Bolsonaro. Quão importante é a existência de projetos Indígenas, e o reforço do financiamento e capacitação das organizações de base e comunitárias, para que os ganhos a nível institucional tenham realmente consequências, depois, a nível local, e no melhoramento das condições de vida das diferentes comunidades Indígenas?
CLAUDIA SOARES
Eu faço uma análise de conjuntura geral. Não adianta ter, somente, essas grandes estruturas do governo, se não há financiamento. Então, de facto, precisa – isso com certeza vai levar um tempo – mas precisa ter um fortalecimento dessas instâncias de governo, para que eles consigam, de facto, potencializar projetos para os territórios Indígenas.
E aí, os fundos Indígenas, eles vêm como um complemento. Vêm para ajudar. Porque quanto mais recursos tiver, e chegar nos territórios, melhor. Melhor para que esses territórios tenham autonomia de gestão desses seus projetos de vida. Não tem uma disputa em relação a isso. Porque lá dentro do próprio governo, nós temos parentes Indígenas. Parentes que há muitos anos fizeram parte da luta de muita conquista que nós temos até hoje. Pessoas competentes, que estão ali, e que também olham e trabalham em prol das comunidades Indígenas.
E porque é que eu estou colocando que não há uma disputa? Porque, estrategicamente, nós também estamos nos aliando a outros fundos que trabalham na Amazônia. E aí eu falo da Rede de Fundos da Amazônia Brasileira, que não somente é uma rede que tem fundos Indígenas, mas também tem fundos quilombolas, extrativistas. E porque é que eu estou trazendo isso, também? Porque nós estamos olhando estrategicamente como um todo, não para um território específico.
E aí, com isso, a gente conseguindo nos organizar, nos ajudar, a gente também consegue ajudar outros biomas. Porque, no Brasil, não existe somente a Floresta Amazônica. Nós temos a Mata Atlântica, nós temos o Cerrado, nós temos os Pampa, enfim, nós temos outros biomas no Brasil. Então, se a gente consegue se organizar aqui, enquanto Floresta Amazônica, que, olhando o Brasil, é 23% de todo o Brasil – 23%, é a área que está mais preservada – então a gente se organiza aqui, para poder também ajudar outros biomas.
Isso não quer dizer que nós somos a favor de tudo o que está sendo colocado. Mas, olhando para trás – que nós saímos aí de um governo devastador, sombrio, e declaradamente anti-Indígena, e que foi um governo que derramou muito sangue Indígena – então, com isso, aos poucos, também nós estamos aí nos fortalecendo, e fortalecendo os nossos parentes que estão aí com uma missão é importante no Estado brasileiro, no governo brasileiro. Eu acho que eu queria trazer essa essa visão mais ampla de toda essa conjuntura política.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
O Fundo Indígena do Rio Negro, ele foi criado exatamente no governo do Jair Bolsonaro, onde nós tínhamos um governante anti-Indígena, onde nós tínhamos um desafio muito grande de proteger o nosso território e buscar o bem viver das nossas comunidades. Então, o nosso movimento aqui no Rio Negro, de maneira muito pioneira e de maneira muito forte, criou esse fundo, como forma de resistência também ao governo.
Apesar de hoje a gente ter um cenário diferente, com um Presidente que apoia a nossa causa, com governadores, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, mas o que a gente pode dizer é que apoiar o governo, independente se é esse governo agora, ou o próximo governo, não necessariamente é apoiar as comunidades Indígenas. Os apoios são diferentes. Eu acho que cada um tem o seu papel.
O governo tem esse papel de colocar em prática as políticas públicas, de fazer controle social, de olhar de uma maneira mais ampla para todos os territórios. E nós, aqui, como essa organização Indígena independente do governo, nós atuamos com as nossas comunidades, fazendo captação de recursos na filantropia, na cooperação Internacional. O nosso recurso atual não é um recurso de governo, não é um recurso nacional. É um recurso que vem da cooperação internacional, que é para apoiar as comunidades.
Então, acho que hoje a gente tem uma oportunidade de atuar de maneira conjunta com o atual governo, por essa experiência que nós já temos. E eu acho que é isso que nós esperamos. Que nós, como fundo, sejamos consultados, que nós, como fundos, também sejamos lembrados como mecanismos consolidados e que de facto funcionam. Então, que o governo atual possa estreitar essa relação com as organizações menores. Nem falo menores, mas com as organizações de base, mesmo. Com as organizações comunitárias. Então é essa mensagem que eu gostaria de deixar: que financiar o governo não necessariamente é financiar as comunidades Indígenas.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
O FIRN e o Podáali resultam já de longas caminhadas na luta pelos direitos Povos Indígenas, e do fortalecimento, também, dessas comunidades. Olhando para o vosso historial, e para o crescimento do movimento Indígena no Brasil, como é que ambas gostariam que evoluísse o trabalho dos fundos Indígenas, agora, nos próximos anos?
CLAUDIA SOARES
O desejo é que os fundos Indígenas continuem crescendo, fortalecendo suas capacidades de apoiar esses projetos dentro dos territórios. Esperamos também um aumento nesse reconhecimento, e no financiamento para esses fundos, que é importante.
Permitindo aí uma maior abrangência, um maior impacto. Porque o Podáali, ele é da Amazônia brasileira, mas também nós temos dentro das nossas normativas que nós podemos receber recursos para outros biomas, aqui no Brasil. Ou então, para a Amazônia não brasileira, para outros países.
E que sejamos, de facto, respeitados. E que o nosso protagonismo continue sendo evidência. E que o nosso trabalho seja, de facto, um trabalho que alegre. Acho que eu usaria essas palavras mais simples. Que alegre os corações das pessoas que financiam. Que alegre um pouco mais o coração de quem está em parcerias, nos ajudando, também. Os nossos parceiros. Enfim, que esse trabalho seja leve.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Em 2022, eu e Valéria Paye, que é diretora executiva do fundo Podáali, nós participámos do Encontro Global de Fundos, promovido pela IFIP, em Mérida, Yucatán. E esse espaço foi um espaço fundamental, para que a gente pudesse enxergar a importância que esses mecanismos têm atualmente a nível global. Nós tínhamos iniciado uma discussão aqui no Brasil, mas esse espaço do IFIP foi um espaço de realmente a gente consolidar esse futuro, essa visão de futuro que a gente tem para os fundos Indígenas.
A importância que os fundos Indígenas têm no enfrentamento das mudanças climáticas. A gente não pode deixar de mencionar que esses fundos, eles são uma das formas mais eficazes no enfrentamento às mudanças climáticas. Então, não só os fundos, esses mecanismos precisam ser reconhecidos como tal.
Mas que a gente tenha mais esses espaços nacionais e internacionais, globais, para a troca de experiências. Para que a gente possa se conectar com outros parentes, e assim a gente possa se fortalecer como um grande movimento, como fazer uma grande incidência. E eu diria mais: que a gente ocupasse os espaços. Que nós fossemos não só convidados, mas nós fossemos os primeiros a serem lembrados, quando fosse ter mesas de debates sobre financiamento direto a Povos Indígenas.
Então, a gente precisa estar nessas mesas de debate. Não só escutando, mas falando, também. Falando com propriedade, a partir da experiência que nós temos.
Crédito: Podáali
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Monica, a IFIP tem feito um trabalho extraordinário para fortalecer e tornar visível o trabalho dos Fundos Indígenas, em todo o mundo. Poderia falar-nos um pouco mais sobre o papel dos Fundos Indígenas no movimento de descolonização da filantropia e também sobre a forma como a IFIP tem levado a cabo o seu trabalho de apoio aos Fundos Indígenas?
MONICA WIGMAN (IFIP, INTERNATIONAL FUNDERS FOR INDIGENOUS PEOPLES)
Em primeiro lugar, queria agradecer-vos por nos terem recebido aqui hoje. E também agradecer às nossas colegas por partilharem sobre o trabalho que estão a desenvolver, e por mostrarem o que é ser uma liderança Indígena.
Queria partilhar um pouco sobre a história da IFIP. Nós somos a única rede filantrópica global dedicada aos Povos Indígenas de todo o mundo. E, por isso, executamos a nossa missão cultivando relações profundas. E essas relações são baseadas no respeito e na confiança, tanto com a esfera filantrópica quanto com os líderes Indígenas.
Também defendemos o financiamento direto a organizações Indígenas, bem como a iniciativas lideradas por Indígenas. Conseguimos fazê-lo através do estabelecimento dessa rede sólida, que serve os Povos Indígenas do mundo na esfera da filantropia.
E a IFIP também cria espaços que permitem aos Fundos Indígenas partilharem conhecimentos e impulsionarem mudanças de paradigma. Tudo isto dentro da própria esfera da filantropia global.
Este é um tema que só faz sentido se dermos um pouco de contexto histórico. Em 2018, o IFIP organizou o primeiro Encontro Global de Fundos Indígenas, no Novo México, nos Estados Unidos. Iniciámos um diálogo sobre Fundos Indígenas, entre Fundos Indígenas. E esse diálogo levou à formação de um Grupo de Trabalho de FIs. Seguiram-se mais dois encontros de Fundos Indígenas. E penso que a Josimara mencionou o terceiro encontro, que se realizou no México. E neste encontro de Fundos Indígenas foi estabelecida a Aliança Global de Fundos Indígenas.
A IFIP funciona como secretariado desta Aliança, apoiando o seu trabalho através da organização de workshops, ou planeando futuros encontros entre Fundos Indígenas. Também trabalhamos a comunicação da Aliança, e ao nível da sensibilização. E fazemos tudo isto, paralelamente a apoiar o movimento como um todo, num sentido mais alargado.
E queria também abordar um pouco o contexto dos FIs, e o seu papel na filantropia. A primeira coisa em que podemos pensar são os 5 Rs: Respeito, Relações, Responsabilidade, Reciprocidade e Redistribuição. Na IFIP, acreditamos que estes aspetos estão na base dos Fundos Indígenas e da filantropia Indígena, na sua forma de dar.
Crédito: IFIP
E procuramos questionar os métodos ocidentalizados de financiamento e as formas filantrópicas de medir o impacto, no nosso apoio aos Fundos Indígenas. Estamos a falar de financiamento que chega diretamente às pessoas que estão mais próximas dos desafios que as suas comunidades enfrentam. Estamos a falar de líderes que sabem o que é melhor para as suas comunidades, e respeitar isso deve estar na base das nossas relações.
Os FIs são dirigidos e geridos por Indígenas. Por conseguinte, podem ter um impacto muito maior e mais profundo, o impacto que todos procuramos, e isso impulsiona o movimento. E gostava de reforçar que a promoção da autodeterminação, da autonomia na governação, são importantes partes do papel que os FIs desempenham no movimento da filantropia Indígena.
Para terminar, lembro que no nosso website – internationalfunders.org – temos vários artigos e várias publicações, e eu sugiro a todos que as leiam e consultem, porque incluem muita informação capaz de dar força a este movimento, que a IFIP está muito empenhada em defender.
Crédito: IFIP
Image Credit: Podáali
MARIANA MARQUES
E agora estamos quase a terminar esta conversa, e eu queria perguntar à Claudia e à Josimara de que forma é que o estabelecimento de pontes e alianças com fundos Indígenas de outras partes do Brasil e do mundo, bem como com outras organizações também aliadas, fortalece o vosso trabalho? E se acreditam que estas alianças estão a mudar o panorama da filantropia a nível global?
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Como eu mencionei antes, esses espaços que o IFIP promove, são espaços muito importantes para a troca de experiências. Para que a gente consiga visualizar os desafios que outros territórios têm, e como que a gente pode enfrentá-los.
Assim como também gostaria de mencionar novamente, como a Cláudia já mencionou: nós fazemos hoje parte de uma aliança, de uma rede, que se chama Rede de Fundos Comunitários da Amazônia Brasileira. Onde nós temos a presença de mais de 8 fundos, fundos comunitários, na área de abrangência ali da Amazônia. Fundos indígenas, quilombolas, extrativistas. Onde nós nos reunimos, com o objetivo de realmente nos fortalecer, de realizar a troca de experiências, de mostrar desafios que nós temos nos nossos territórios, e como a gente enfrenta esses desafios.
Então, essas alianças, elas são muito importantes. Inclusive, exatamente nesses espaços, a gente discute muito sobre esse panorama da filantropia. O que é filantropia para nós? Como a gente pode acessar esse recurso que vem da filantropia? Como nós entendemos o que é a filantropia? Então, é um espaço muito importante, onde a gente se reconhece.
No início da entrevista, eu mencionei a criação de outros fundos Indígenas no Brasil. Hoje, nós temos o FIRN e o Podáali como fundos consolidados, ao mesmo tempo que nós temos fundos em processo de criação em vários outros territórios Indígenas. Então, como é que o IFIP, como é que nós, fundos já consolidados, podemos apoiar esses outros fundos que estão sendo criados? Isso também é importante. Que esses fundos, os fundos Indígenas, não se torne algo banal. Que se torne algo realmente muito importante. Que sejam criados de maneira muito responsável, para que tenham um impacto que tem os objetivos alcançados da melhor forma possível.
Image Credit: FIRN
CLAUDIA SOARES
Os fundos Indígenas, eles desempenham esse papel central na descolonização da filantropia, ao garantir, de facto, os recursos, para que cheguem diretamente nos territórios, ou no chão da aldeia. Promovendo aí essa sua autonomia, e uma auto-determinação mesmo, do território. Então, esse estabelecimento de alianças, de facto, fortalece o trabalho dos fundos, ao possibilitar realmente essa troca de experiências, essa colaboração em projetos, ampliação de redes de apoio. O próprio IFIP dá essas condições, tem essa criação de redes, que faz também com que os fundos que estão ali, eles tenham uma visibilidade maior, global.
E que ajuda, também, a romper com várias práticas filantrópicas tradicionais, que frequentemente marginalizam as comunidades Indígenas.
Eu posso dizer que essas alianças, elas estão efetivamente mudando o panorama global da filantropia. Porque esses fundos, com maior visibilidade, e mostrando que eles dão mais acesso, e um acesso justo para essas comunidades, para esses territórios acessarem recursos, nesse cenário, a gente acaba de facto mudando esse panorama, esse olhar.
Crédito: Podáali
Recentemente, teve um intercâmbio, onde foram fundos aqui do Brasil, de outros países, para África, para ajudá-los, também, a entender toda essa dinâmica do que é ser um fundo Indígena. Aqui no Brasil, nós temos Territórios Indígenas. E quando a gente for comparar com alguns alguns países… A gente acha que a nossa vida está difícil, mas de outros países é um pouco pior. Então, como que nós podemos ajudar, nesse sentido de fortalecer a luta, a luta política, para que eles consigam, de facto, garantir a sua vida? Para que eles não tenham medo de proteger a sua vida e a vida do coletivo? Porque a ameaça, quando ela chega, ela chega muito brutal. Então, muitas vezes as pessoas, elas se se entregam por medo. Então, como que nós podemos fortalecer o outro, para que ele não tenha medo?
Então, acho que seria uma mensagem mais final, mesmo. De que a gente consiga nos restabelecer em rede. Mas que fundos globais – porque hoje nós temos chamadas, fundos globais, fundos territoriais, fundos regionais – mas que essas chamadas, elas não nos distanciem de um trabalho bonito que a gente faz, que é um trabalho de proteção de vida. Que é um trabalho de construção coletiva, realmente para o bem viver das populações.
External Links
Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira
https://fundopodaali.org.br
FIRN - Fundo Indígena do Rio Negro - Official Website
International Funders for Indigenous Peoples - Building a Philanthropic Ecosystem
https://internationalfunders.org
Connecting the Dots com Fundos Indígenas (Podáali, FIRN e IFIP)
Uma conversa com dois Fundos Indígenas da Amazónia brasileira, o Podáali e o FIRN, e com a International Funders for Indigenous Peoples, responsável pelo secretariado da Aliança Global de Fundos Indígenas.
Enquanto organização aliada dos Povos Indígenas, apostada em apoiar exclusivamente projetos de pequenas organizações de base, a Azimuth World Foundation tem tido a oportunidade de constatar de perto as inúmeras barreiras que as comunidades Indígenas encontram no acesso a mecanismos de financiamento para os seus projetos.
Esta é uma realidade alarmante, tendo em conta os enormes desafios que as comunidades Indígenas um pouco por todo o mundo enfrentam. Desafios provenientes do legado destrutivo do colonialismo, ou da continuação das práticas coloniais até aos dias de hoje, que exercem enorme violência e marginalizam estas comunidades. Desafios relacionados com os padrões de consumo do Ocidente, que levam a um extrativismo selvagem em territórios Indígenas e que são responsáveis pelas alterações climáticas, sentidas em primeiro lugar, e de forma mais intensa, nos territórios das próprias comunidades Indígenas. Mas é igualmente claro o papel fulcral que as soluções oriundas das cosmovisões, modos de vida e conhecimento tradicional Indígenas desempenham na luta contra as crises climática e da biodiversidade. Que perante este panorama, apenas 0,6% das doações de fundos globais cheguem às comunidades Indígenas é avassalador e exige uma reflexão profunda.
Este número foi divulgado num relatório recentemente comissionado pela International Funders for Indigenous Peoples (IFIP), uma rede de financiadores Indígenas e não-Indígenas, dedicados a apoiar diretamente comunidades Indígenas, e da qual a Azimuth se orgulha de fazer parte. Uma rede que está profundamente apostada num caminho de descolonização da filantropia: através do qual se possam desbloquear as barreiras que impedem o acesso destas comunidades a financiamento direto; através do qual seja reforçado significativamente o apoio global às comunidades Indígenas; através do qual se altere a dinâmica de financiamento para uma promoção total da auto-determinação dos Povos Indígenas, onde as necessidades e aspirações das comunidades definam o desenho e a gestão dos projetos. Um dos elementos centrais nesta procura de uma filantropia mais justa, eficaz e humana é o fortalecimento dos Fundos Indígenas.
Tal como as comunidades Indígenas elas mesmas, os Fundos Indígenas caracterizam-se por uma enorme diversidade, e cada Fundo tem os seus aspetos únicos. Tendo em mente a impossibilidade de uma definição rígida, o Grupo de Trabalho de Fundos Indígenas organizado pela IFIP chegou à seguinte definição: “Os Fundos Indígenas são guiados por cosmovisões Indígenas. São liderados por, e dirigidos aos Povos Indígenas. São fundos que fortalecem a auto-determinação e apoiam processos de empoderamento das comunidades, tanto a nível local como global, para que estas sejam capazes de mudar os paradigmas e as relações de poder, levando a que assimetrias de poder e recursos possam dar lugar ao reconhecimento e à reciprocidade”.
Os Fundos Indígenas são hoje uma realidade incontornável, e o seu trabalho merece ser amplamente reconhecido. E por isso, deixa-nos imensamente felizes ter hoje connosco Claudia Soares Baré, Diretora Secretária do Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, Josimara Melgueiro de Oliveira, Coordenadora do Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN) entre 2021 e 2024, e Monica Wigman, que coordena a área de Fundos Indígenas da IFIP. Três testemunhos que temos a certeza nos ajudarão a compreender melhor a importância crucial dos Fundos Indígenas, muito particularmente no Brasil.
Veja a versão em vídeo em baixo, ou faça scroll para ouvir a versão em podcast ou ler a versão escrita.
CONNECTING THE DOTS – PODCAST
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VERSÃO ESCRITA
Crédito: FIRN
MARIANA MARQUES
Claudia, Josimara, Monica, bem-vindas! Como referi na introdução, é muito difícil chegar a uma definição fechada do que são os Fundos Indígenas. Claudia e Josimara, poderiam ajudar-nos a definir um pouco melhor o Podáali e o FIRN?
CLAUDIA SOARES
Bom dia, obrigada pelo convite. O Podáali está sempre à disposição para estar participando e divulgando um pouco mais sobre esse mecanismo inovador, que é um mecanismo financeiro da Amazónia brasileira.
O Podáali foi criado por Indígenas, para Indígenas e com gestão Indígena. A sua construção foi conduzida pela COIAB, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. E nós somos essa conquista do movimento Indígena na Amazônia e seus parceiros. Caminhamos juntos nas construções, e servimos como captadores de recursos para apoiar os Povos, comunidades e organizações Indígenas.
Nós surgimos como uma resposta urgente à crise enfrentada pelas comunidades Indígenas em todo o território da Amazônia brasileira. Os nossos territórios, eles sofrem, com falta de recursos, apoios adequados. Com várias consequências: a própria degradação ambiental, perda de territórios ancestrais, a violação dos direitos humanos fundamentais.
Então, o Podáali foi criado com uma missão de promover e fortalecer a autonomia, os direitos Indígenas, a gestão territorial e ambiental, sendo essa referência na captação, gestão e repasse dos recursos para os Povos, comunidades e organizações Indígenas na Amazônia brasileira.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA (BARÉ) – FIRN, RIO NEGRO INDIGENOUS FUND
Purãga ara, parentes. Purãga ara, parenta Cláudia, também do Povo Baré. Eu me chamo Josimara. Também sou do Povo Baré. Eu falo aqui do noroeste amazônico, do município chamado São Gabriel da Cachoeira. Tríplice fronteira, ali com a Colômbia e Venezuela. Fui coordenadora do Fundo Indígena do Rio Negro entre 2021 e 2024, o qual tenho muito orgulho de dizer que é um fundo também criado por Indígenas, por essa luta do movimento Indígena aqui no rio Negro. Nós costumamos dizer que o fundo, o FIRN, ele é fruto da luta também do movimento Indígena do Rio Negro por terra e cultura.
A gente iniciou nossas atividades em 2021, criando uma equipe específica Indígena para operar esse fundo, sendo o primeiro fundo Indígena a apoiar diretamente comunidades através de editais. Nós atuamos atualmente em 12 Terras Indígenas, numa área de mais ou menos 23 milhões de hectares, abrangendo três grandes municípios aqui do Amazonas: Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira. O nosso território é o território de abrangência da FOIRN, que é uma organização extremamente reconhecida no Brasil, pelo movimento Indígena. É uma organização base que tem 37 anos de história e atuação.
A gente trabalha aqui com 23 Povos Indígenas. A gente continua resistindo, apesar das invasões, apesar de todos os ciclos de exploração que a gente vem sofrendo durante todo esse tempo. A gente segue resistindo. A gente segue lutando pelos nossos direitos.
A nossa missão é promover o bem viver e a gestão territorial dos nossos Povos, aqui no Rio Negro. Através de projetos elaborados pelas comunidades, e geridos também pelas próprias comunidades. O nosso primeiro edital, ele foi lançado em 2021. Atualmente, o FIRN está executando o seu segundo edital, com uma experiência muito proveitosa e muito desafiadora.
Crédito: FIRN
MARIANA MARQUES
Os Fundos Indígenas são um elemento essencial no movimento para descolonizar a filantropia e defender a autodeterminação dos Povos Indígenas. Na vossa opinião, que barreiras enfrentam as comunidades Indígenas no acesso aos mecanismos tradicionais de financiamento? E o que é que torna únicos os fundos Indígenas, e de que forma é que eles permitem às organizações de base Indígenas ultrapassar essas barreiras?
CLAUDIA SOARES
Dentro da própria discussão do movimento Indígena a nível da Amazônia, historicamente, os Territórios Indígenas, eles enfrentam barreiras. Como a própria burocracia excessiva. A falta na própria informação sobre oportunidades de financiamento também é uma barreira, ainda. O preconceito, a desconfiança, por parte dos próprios financiadores em relação a recursos serem executados. Isso são algumas das barreiras.
Então, os fundos Indígenas, assim como o Podáali, acredito que o FIRN, eles são únicos. Primeiro, porque são geridos por Indígenas. E isso o que quer dizer? Que estamos focados em fortalecer a autonomia das comunidades, dos nossos territórios. Porque nós somos pertencentes a ele. Nós entendemos como que funciona, a nossa organização social, os nossos trabalhos.
E porque também esses fundos Indígenas, eles vão aí oferecer financiamento de forma mais acessível, e que respeitam as cosmovisões Indígenas, facilitando aí o desenvolvimento de seus projetos de vida, que atendem também as necessidades reais de seus territórios.
A gente coloca, aqui no Podáali, que quando nós falamos em autodeterminação, ou autonomia dos territórios, para gerenciar, para gerir ou executar esses projetos de vida, com isso nós não queremos dizer que nós vamos formar profissionais para execução de projetos. Não, a gente não está olhando por esse lado. Nós estamos falando e mostrando que os próprios territórios, eles têm, sim, capacidade de gerenciar ou de gerir recursos para as necessidades que estão ali, no chão daquele território.
Crédito: Podáali
Então, essas barreiras que eu coloquei logo no início, aos poucos elas estão sendo ultrapassadas. E isso, a gente consegue medir com os primeiros editais que nós fizemos. Também o Podáali, em 2023, executou o seu primeiro edital. Com um recurso de, mais ou menos, 1.600.000 reais. Pequeno, ainda. Muito com o intuito mesmo de nós todos aprendermos a lidar com isso, porque é uma novidade. O movimento Indígena está trabalhando diretamente com o financiamento.
Eu posso dizer que nós somos doutores, experts, na incidência política pela demarcação da terra, pela saúde, pela educação. Então, essa incidência política, nós temos muita segurança em relação a isso. E com o financiamento, agora, nós também queremos ser doutores nisso. Nós queremos ter segurança. Mas, para isso, a gente coloca muito a questão do tempo Indígena. Porque ao mesmo tempo que nós estamos executando todas essas atividades, todas essas tarefas, nós também estamos aprendendo. Aos poucos, nós estamos nos aperfeiçoando.
E, aos poucos, nós ganhando essa confiança dos financiadores do Podáali. Mas também a confiança dos territórios. Porque os territórios precisam de confiar no Podáali, que essa exigência de burocracia pare aqui, conosco. E que haja essa facilidade de acesso, para que os territórios consigam executar os seus projetos de vida.
E que cada vez mais esses recursos possam potencializar. Porque esses trabalhos, todos esses projetos de vida, eles já são feitos diariamente nos territórios. Mas com recursos financeiros direcionados para isso, eles vão potencializar ainda mais o trabalho que está sendo feito. Tanto de sustentabilidade, de manter propriamente a floresta em pé. De cuidar dos rios, quando a gente fala “Não” ao garimpo ilegal. A própria soberania alimentar, para que os nossos peixes, as nossas carnes, continuem saudáveis.
Então, a gente tem conseguindo ultrapassar, de facto, essas barreiras que estão aí à vista dos fundos Indígenas, de modo geral.
Crédito: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Tem uma frase que uma parenta nossa fala, que é: “Quem melhor do que nós mesmos para falar de nós mesmos?” Então, é um grande diferencial dos fundos Indígenas, como a Claudia trouxe. Essa cosmovisão, que é só nossa, que só nós entendemos. Os nossos territórios, eles têm especificidades e particularidades que só nós sabemos. Então, como é importante ter fundos Indígenas, liderado por Indígenas, que entendam toda visão mais sensível. Nós temos uma visão técnica, ao mesmo tempo que a gente também tem uma visão sensível ao nosso território.
Um outro ponto, que eu gostaria de mencionar como uma barreira que a gente quebra, é a nossa própria relação com o território. Nós, fundos Indígenas, a gente tem uma relação muito diferente. E nós costumamos dizer que os fundos Indígenas foram criados para chegar nos lugares que os outros fundos não chegam. Para chegar na ponta. Para chegar naquelas comunidades onde não se tem uma personalidade jurídica, não se tem uma estrutura jurídica. Que não falam nem escrevem português. Então, nós, como fundos Indígenas, podemos criar estratégias para chegar nesses territórios.
Então, a gente incentiva a autonomia, ao mesmo tempo que a gente se preocupa muito com a relação de tutela, também. O quanto esses territórios, eles estão preparados ou não para receber esse financiamento. E como nós podemos ajudá-los.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Tanto o Podáali, como o FIRN, trabalham com organizações comunitárias Indígenas na região da Amazônia. E será que poderiam partilhar connosco alguns exemplos dos projetos que são apoiados pelos vossos fundos, e contar-nos, também, um pouco mais sobre a forma como estes projetos são baseados na defesa da autodeterminação das comunidades?
CLAUDIA SOARES
O Podáali apoia projetos em 8 linhas temáticas, 8 eixos principais. E esses eixos, eles estão alinhados com as diretrizes da COIAB, que é a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Alinhado também com os ODS. E com a PNGATI, que é uma política nacional sobre Terras Indígenas.
E essas linhas temáticas, elas estão então envolvidas com a gestão e proteção territorial e ambiental Indígena, a economia sustentável e soberania alimentar, fortalecimento institucional e promoção de direitos, educação Indígena e formação profissional, medicina ancestral e saúde Indígena, fortalecimento cultural e conhecimentos tradicionais Indígenas, gênero, gerações e pessoas Indígenas com deficiência, e a garantia de direitos dos Povos Indígenas isolados.
Nós trabalhamos tanto com organizações Indígenas que têm uma personalidade jurídica ativa, como também nós temos projetos com os grupos coletivos, como nós chamamos, que são aqueles grupos que não têm personalidade jurídica. Que de repente é um grupo de jovens, é um grupo de parteiras, é um grupo de professores, grupo de mulheres.
Nós estamos aí numa execução de projeto, através de premiação, no território Xavante. Então, essa premiação foi construída conjuntamente com os Xavante. O Podáali tem as suas normativas, de como são feitos os repasses para os territórios. E aí, através de editais, ou através de carta convite, ou através de demanda espontânea, onde a premiação está inserida. Então, eles escolheram essa forma de premiação, de repasse, para que as 14 etno-regiões pudessem receber um recurso financeiro, que eles próprios conseguiram fazer a captação. Então, a forma como foi feita a inscrição, foi feito o repasse, tudo foi feito através dessa construção com os Xavante, e eles definiram qual seria a melhor forma de que esses recursos pudessem chegar para o território deles.
Então, dentro do território Xavante, com esse apoio do Podáali, ele não apenas protege as Terras Indígenas contra invasões ilegais, mas também implementa práticas de manejo sustentável da terra. Que foi isso que foi trazido por eles, e foi nesse sentido que foi trabalhado.
Image Credit: Podáali
Ao mesmo tempo, nós temos projetos, por exemplo, que ajudam, ou que potencializam, que implementam projetos de vida, em relação a demarcação de Terras Indígenas. Então, hoje nós já temos esse projeto em execução, onde organizações Indígenas dos territórios fazem parceria com o próprio Podáali, para que ajude na demarcação física dos seus territórios. Porque hoje, no Brasil, nós temos um discurso muito forte, ainda, de que o Estado brasileiro não tem recursos para fazer os trabalhos, por exemplo, de demarcação.
Esses pontos, esses elementos importantes, dentro do Podáali, que a gente consegue fazer hoje. Porque ele foi construído pelos Povos Indígenas. Então, quando ele foi construído, nós tivemos tanto representantes, lideranças, que já estavam inseridos dentro do movimento Indígena, como também foram trazidas lideranças jovens. E aquelas lideranças que estavam iniciando, que nunca tinham participado do movimento. Então, quando foi construído o Podáali, foram trazidos todos esses personagens, para que pudessem pensar juntos como é que nós queríamos que esse mecanismo financeiro pudesse funcionar, e que pudesse realmente chegar aos territórios.
E aí, com isso, eu digo que tanto os próprios territórios, que são dos maiores captadores de recursos, no caso do Podáali, como também as próprias lideranças que fazem parte da nossa governança, são captadoras de recursos, como também a própria diretoria executiva é um captador de recursos. Então, todos nós estamos trabalhando em conjunto, para que esses recursos, sejam eles financeiros ou de outras formas, eles possam chegar, e que eles possam – mais uma vez eu uso a palavra – potencializar o trabalho que já é feito.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Nós temos algo, também, que eu sempre gosto de levantar, para esses projetos especificamente na Amazônia. É o custo da Amazônia. O acesso a esses locais, a esses territórios. Que muitos fundos não entendem, como é difícil o deslocamento, o acesso. Os próprios insumos, a chegarem para esses territórios para poderem esses projetos serem implementados.
Nós nos atentamos e nos importamos muito com essas dificuldades. A gente foi criado em cima dessas dificuldades. Então, esses projetos, eles poderiam enfrentar, com outros fundos, exatamente essa falta de entendimento. O quanto eles têm uma importância para o seu território, mas pode ser que não tenha tanta importância para aquela chamada, ou para aquele edital.
Eu posso mencionar, por exemplo, a revitalização, o resgate da plantação de crajiru, que é uma planta medicinal. Que é uma planta tradicional para o nosso Povo, e que estava se perdendo, estava ficando quase extinta, aqui dentro do nosso território. Então, para a gente, quando a gente recebeu esse projeto, foi um projeto muito bonito, que de prontidão a gente resolveu apoiar.
Eu poderia mencionar, também, que a diferença entre fundos Indígenas e outros fundos, é, como eu já mencionei, a relação que a gente tem com essas associações, com essas organizações. Nós temos monitoramento. Aqui no FIRN, nós temos o monitoramento. Eu diria que é um ponto-chave para que nosso fundo tenha tanto sucesso. Nós monitoramos esses projetos, nós apoiamos o desenvolvimento das atividades, nós orientamos. E também estamos ali, ao lado, de maneira muito técnica, desenvolvendo, apoiando, facilitando o desenvolvimento das atividades dentro do território.
Nós não apenas repassamos recursos. Isso é muito importante que seja dito. Nós não somos só repassadores de recurso. Nós viemos também para facilitar esse processo. Para que os territórios e essas pequenas organizações se sintam apoiadas, de facto. Isso é muito importante. Isso é um detalhe muito importante, para nos diferenciar de outros fundos.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Eu agora queria trazer um pouco da atualidade política brasileira para esta conversa, também. Nós sabemos que, desde a eleição do presidente Lula, tem havido um grande reforço da presença Indígena a nível institucional. Não só foram eleitos um número recorde de deputados Indígenas para o Congresso, como o próprio Presidente criou o Ministério dos Povos Indígenas, liderado pela Sônia Guajajara, líder Indígena, e nomeou também a primeira mulher Indígena para a presidência da FUNAI, Joênia Wapichana. No entanto, há múltiplos relatos que nos chegam todos os dias, ainda, sobre os desafios que as comunidades Indígenas no Brasil continuam a enfrentar, mesmo depois de terminada a governação tão destrutiva de Jair Bolsonaro. Quão importante é a existência de projetos Indígenas, e o reforço do financiamento e capacitação das organizações de base e comunitárias, para que os ganhos a nível institucional tenham realmente consequências, depois, a nível local, e no melhoramento das condições de vida das diferentes comunidades Indígenas?
CLAUDIA SOARES
Eu faço uma análise de conjuntura geral. Não adianta ter, somente, essas grandes estruturas do governo, se não há financiamento. Então, de facto, precisa – isso com certeza vai levar um tempo – mas precisa ter um fortalecimento dessas instâncias de governo, para que eles consigam, de facto, potencializar projetos para os territórios Indígenas.
E aí, os fundos Indígenas, eles vêm como um complemento. Vêm para ajudar. Porque quanto mais recursos tiver, e chegar nos territórios, melhor. Melhor para que esses territórios tenham autonomia de gestão desses seus projetos de vida. Não tem uma disputa em relação a isso. Porque lá dentro do próprio governo, nós temos parentes Indígenas. Parentes que há muitos anos fizeram parte da luta de muita conquista que nós temos até hoje. Pessoas competentes, que estão ali, e que também olham e trabalham em prol das comunidades Indígenas.
E porque é que eu estou colocando que não há uma disputa? Porque, estrategicamente, nós também estamos nos aliando a outros fundos que trabalham na Amazônia. E aí eu falo da Rede de Fundos da Amazônia Brasileira, que não somente é uma rede que tem fundos Indígenas, mas também tem fundos quilombolas, extrativistas. E porque é que eu estou trazendo isso, também? Porque nós estamos olhando estrategicamente como um todo, não para um território específico.
E aí, com isso, a gente conseguindo nos organizar, nos ajudar, a gente também consegue ajudar outros biomas. Porque, no Brasil, não existe somente a Floresta Amazônica. Nós temos a Mata Atlântica, nós temos o Cerrado, nós temos os Pampa, enfim, nós temos outros biomas no Brasil. Então, se a gente consegue se organizar aqui, enquanto Floresta Amazônica, que, olhando o Brasil, é 23% de todo o Brasil – 23%, é a área que está mais preservada – então a gente se organiza aqui, para poder também ajudar outros biomas.
Isso não quer dizer que nós somos a favor de tudo o que está sendo colocado. Mas, olhando para trás – que nós saímos aí de um governo devastador, sombrio, e declaradamente anti-Indígena, e que foi um governo que derramou muito sangue Indígena – então, com isso, aos poucos, também nós estamos aí nos fortalecendo, e fortalecendo os nossos parentes que estão aí com uma missão é importante no Estado brasileiro, no governo brasileiro. Eu acho que eu queria trazer essa essa visão mais ampla de toda essa conjuntura política.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
O Fundo Indígena do Rio Negro, ele foi criado exatamente no governo do Jair Bolsonaro, onde nós tínhamos um governante anti-Indígena, onde nós tínhamos um desafio muito grande de proteger o nosso território e buscar o bem viver das nossas comunidades. Então, o nosso movimento aqui no Rio Negro, de maneira muito pioneira e de maneira muito forte, criou esse fundo, como forma de resistência também ao governo.
Apesar de hoje a gente ter um cenário diferente, com um Presidente que apoia a nossa causa, com governadores, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, mas o que a gente pode dizer é que apoiar o governo, independente se é esse governo agora, ou o próximo governo, não necessariamente é apoiar as comunidades Indígenas. Os apoios são diferentes. Eu acho que cada um tem o seu papel.
O governo tem esse papel de colocar em prática as políticas públicas, de fazer controle social, de olhar de uma maneira mais ampla para todos os territórios. E nós, aqui, como essa organização Indígena independente do governo, nós atuamos com as nossas comunidades, fazendo captação de recursos na filantropia, na cooperação Internacional. O nosso recurso atual não é um recurso de governo, não é um recurso nacional. É um recurso que vem da cooperação internacional, que é para apoiar as comunidades.
Então, acho que hoje a gente tem uma oportunidade de atuar de maneira conjunta com o atual governo, por essa experiência que nós já temos. E eu acho que é isso que nós esperamos. Que nós, como fundo, sejamos consultados, que nós, como fundos, também sejamos lembrados como mecanismos consolidados e que de facto funcionam. Então, que o governo atual possa estreitar essa relação com as organizações menores. Nem falo menores, mas com as organizações de base, mesmo. Com as organizações comunitárias. Então é essa mensagem que eu gostaria de deixar: que financiar o governo não necessariamente é financiar as comunidades Indígenas.
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
O FIRN e o Podáali resultam já de longas caminhadas na luta pelos direitos Povos Indígenas, e do fortalecimento, também, dessas comunidades. Olhando para o vosso historial, e para o crescimento do movimento Indígena no Brasil, como é que ambas gostariam que evoluísse o trabalho dos fundos Indígenas, agora, nos próximos anos?
CLAUDIA SOARES
O desejo é que os fundos Indígenas continuem crescendo, fortalecendo suas capacidades de apoiar esses projetos dentro dos territórios. Esperamos também um aumento nesse reconhecimento, e no financiamento para esses fundos, que é importante.
Permitindo aí uma maior abrangência, um maior impacto. Porque o Podáali, ele é da Amazônia brasileira, mas também nós temos dentro das nossas normativas que nós podemos receber recursos para outros biomas, aqui no Brasil. Ou então, para a Amazônia não brasileira, para outros países.
E que sejamos, de facto, respeitados. E que o nosso protagonismo continue sendo evidência. E que o nosso trabalho seja, de facto, um trabalho que alegre. Acho que eu usaria essas palavras mais simples. Que alegre os corações das pessoas que financiam. Que alegre um pouco mais o coração de quem está em parcerias, nos ajudando, também. Os nossos parceiros. Enfim, que esse trabalho seja leve.
Image Credit: Podáali
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Em 2022, eu e Valéria Paye, que é diretora executiva do fundo Podáali, nós participámos do Encontro Global de Fundos, promovido pela IFIP, em Mérida, Yucatán. E esse espaço foi um espaço fundamental, para que a gente pudesse enxergar a importância que esses mecanismos têm atualmente a nível global. Nós tínhamos iniciado uma discussão aqui no Brasil, mas esse espaço do IFIP foi um espaço de realmente a gente consolidar esse futuro, essa visão de futuro que a gente tem para os fundos Indígenas.
A importância que os fundos Indígenas têm no enfrentamento das mudanças climáticas. A gente não pode deixar de mencionar que esses fundos, eles são uma das formas mais eficazes no enfrentamento às mudanças climáticas. Então, não só os fundos, esses mecanismos precisam ser reconhecidos como tal.
Mas que a gente tenha mais esses espaços nacionais e internacionais, globais, para a troca de experiências. Para que a gente possa se conectar com outros parentes, e assim a gente possa se fortalecer como um grande movimento, como fazer uma grande incidência. E eu diria mais: que a gente ocupasse os espaços. Que nós fossemos não só convidados, mas nós fossemos os primeiros a serem lembrados, quando fosse ter mesas de debates sobre financiamento direto a Povos Indígenas.
Então, a gente precisa estar nessas mesas de debate. Não só escutando, mas falando, também. Falando com propriedade, a partir da experiência que nós temos.
Crédito: Podáali
Image Credit: FIRN
MARIANA MARQUES
Monica, a IFIP tem feito um trabalho extraordinário para fortalecer e tornar visível o trabalho dos Fundos Indígenas, em todo o mundo. Poderia falar-nos um pouco mais sobre o papel dos Fundos Indígenas no movimento de descolonização da filantropia e também sobre a forma como a IFIP tem levado a cabo o seu trabalho de apoio aos Fundos Indígenas?
MONICA WIGMAN (IFIP, INTERNATIONAL FUNDERS FOR INDIGENOUS PEOPLES)
Em primeiro lugar, queria agradecer-vos por nos terem recebido aqui hoje. E também agradecer às nossas colegas por partilharem sobre o trabalho que estão a desenvolver, e por mostrarem o que é ser uma liderança Indígena.
Queria partilhar um pouco sobre a história da IFIP. Nós somos a única rede filantrópica global dedicada aos Povos Indígenas de todo o mundo. E, por isso, executamos a nossa missão cultivando relações profundas. E essas relações são baseadas no respeito e na confiança, tanto com a esfera filantrópica quanto com os líderes Indígenas.
Também defendemos o financiamento direto a organizações Indígenas, bem como a iniciativas lideradas por Indígenas. Conseguimos fazê-lo através do estabelecimento dessa rede sólida, que serve os Povos Indígenas do mundo na esfera da filantropia.
E a IFIP também cria espaços que permitem aos Fundos Indígenas partilharem conhecimentos e impulsionarem mudanças de paradigma. Tudo isto dentro da própria esfera da filantropia global.
Este é um tema que só faz sentido se dermos um pouco de contexto histórico. Em 2018, o IFIP organizou o primeiro Encontro Global de Fundos Indígenas, no Novo México, nos Estados Unidos. Iniciámos um diálogo sobre Fundos Indígenas, entre Fundos Indígenas. E esse diálogo levou à formação de um Grupo de Trabalho de FIs. Seguiram-se mais dois encontros de Fundos Indígenas. E penso que a Josimara mencionou o terceiro encontro, que se realizou no México. E neste encontro de Fundos Indígenas foi estabelecida a Aliança Global de Fundos Indígenas.
A IFIP funciona como secretariado desta Aliança, apoiando o seu trabalho através da organização de workshops, ou planeando futuros encontros entre Fundos Indígenas. Também trabalhamos a comunicação da Aliança, e ao nível da sensibilização. E fazemos tudo isto, paralelamente a apoiar o movimento como um todo, num sentido mais alargado.
E queria também abordar um pouco o contexto dos FIs, e o seu papel na filantropia. A primeira coisa em que podemos pensar são os 5 Rs: Respeito, Relações, Responsabilidade, Reciprocidade e Redistribuição. Na IFIP, acreditamos que estes aspetos estão na base dos Fundos Indígenas e da filantropia Indígena, na sua forma de dar.
Crédito: IFIP
E procuramos questionar os métodos ocidentalizados de financiamento e as formas filantrópicas de medir o impacto, no nosso apoio aos Fundos Indígenas. Estamos a falar de financiamento que chega diretamente às pessoas que estão mais próximas dos desafios que as suas comunidades enfrentam. Estamos a falar de líderes que sabem o que é melhor para as suas comunidades, e respeitar isso deve estar na base das nossas relações.
Os FIs são dirigidos e geridos por Indígenas. Por conseguinte, podem ter um impacto muito maior e mais profundo, o impacto que todos procuramos, e isso impulsiona o movimento. E gostava de reforçar que a promoção da autodeterminação, da autonomia na governação, são importantes partes do papel que os FIs desempenham no movimento da filantropia Indígena.
Para terminar, lembro que no nosso website – internationalfunders.org – temos vários artigos e várias publicações, e eu sugiro a todos que as leiam e consultem, porque incluem muita informação capaz de dar força a este movimento, que a IFIP está muito empenhada em defender.
Crédito: IFIP
Image Credit: Podáali
MARIANA MARQUES
E agora estamos quase a terminar esta conversa, e eu queria perguntar à Claudia e à Josimara de que forma é que o estabelecimento de pontes e alianças com fundos Indígenas de outras partes do Brasil e do mundo, bem como com outras organizações também aliadas, fortalece o vosso trabalho? E se acreditam que estas alianças estão a mudar o panorama da filantropia a nível global?
JOSIMARA MELGUEIRO DE OLIVEIRA
Como eu mencionei antes, esses espaços que o IFIP promove, são espaços muito importantes para a troca de experiências. Para que a gente consiga visualizar os desafios que outros territórios têm, e como que a gente pode enfrentá-los.
Assim como também gostaria de mencionar novamente, como a Cláudia já mencionou: nós fazemos hoje parte de uma aliança, de uma rede, que se chama Rede de Fundos Comunitários da Amazônia Brasileira. Onde nós temos a presença de mais de 8 fundos, fundos comunitários, na área de abrangência ali da Amazônia. Fundos indígenas, quilombolas, extrativistas. Onde nós nos reunimos, com o objetivo de realmente nos fortalecer, de realizar a troca de experiências, de mostrar desafios que nós temos nos nossos territórios, e como a gente enfrenta esses desafios.
Então, essas alianças, elas são muito importantes. Inclusive, exatamente nesses espaços, a gente discute muito sobre esse panorama da filantropia. O que é filantropia para nós? Como a gente pode acessar esse recurso que vem da filantropia? Como nós entendemos o que é a filantropia? Então, é um espaço muito importante, onde a gente se reconhece.
No início da entrevista, eu mencionei a criação de outros fundos Indígenas no Brasil. Hoje, nós temos o FIRN e o Podáali como fundos consolidados, ao mesmo tempo que nós temos fundos em processo de criação em vários outros territórios Indígenas. Então, como é que o IFIP, como é que nós, fundos já consolidados, podemos apoiar esses outros fundos que estão sendo criados? Isso também é importante. Que esses fundos, os fundos Indígenas, não se torne algo banal. Que se torne algo realmente muito importante. Que sejam criados de maneira muito responsável, para que tenham um impacto que tem os objetivos alcançados da melhor forma possível.
Image Credit: FIRN
CLAUDIA SOARES
Os fundos Indígenas, eles desempenham esse papel central na descolonização da filantropia, ao garantir, de facto, os recursos, para que cheguem diretamente nos territórios, ou no chão da aldeia. Promovendo aí essa sua autonomia, e uma auto-determinação mesmo, do território. Então, esse estabelecimento de alianças, de facto, fortalece o trabalho dos fundos, ao possibilitar realmente essa troca de experiências, essa colaboração em projetos, ampliação de redes de apoio. O próprio IFIP dá essas condições, tem essa criação de redes, que faz também com que os fundos que estão ali, eles tenham uma visibilidade maior, global.
E que ajuda, também, a romper com várias práticas filantrópicas tradicionais, que frequentemente marginalizam as comunidades Indígenas.
Eu posso dizer que essas alianças, elas estão efetivamente mudando o panorama global da filantropia. Porque esses fundos, com maior visibilidade, e mostrando que eles dão mais acesso, e um acesso justo para essas comunidades, para esses territórios acessarem recursos, nesse cenário, a gente acaba de facto mudando esse panorama, esse olhar.
Crédito: Podáali
Recentemente, teve um intercâmbio, onde foram fundos aqui do Brasil, de outros países, para África, para ajudá-los, também, a entender toda essa dinâmica do que é ser um fundo Indígena. Aqui no Brasil, nós temos Territórios Indígenas. E quando a gente for comparar com alguns alguns países… A gente acha que a nossa vida está difícil, mas de outros países é um pouco pior. Então, como que nós podemos ajudar, nesse sentido de fortalecer a luta, a luta política, para que eles consigam, de facto, garantir a sua vida? Para que eles não tenham medo de proteger a sua vida e a vida do coletivo? Porque a ameaça, quando ela chega, ela chega muito brutal. Então, muitas vezes as pessoas, elas se se entregam por medo. Então, como que nós podemos fortalecer o outro, para que ele não tenha medo?
Então, acho que seria uma mensagem mais final, mesmo. De que a gente consiga nos restabelecer em rede. Mas que fundos globais – porque hoje nós temos chamadas, fundos globais, fundos territoriais, fundos regionais – mas que essas chamadas, elas não nos distanciem de um trabalho bonito que a gente faz, que é um trabalho de proteção de vida. Que é um trabalho de construção coletiva, realmente para o bem viver das populações.
External Links
Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira
https://fundopodaali.org.br
FIRN - Fundo Indígena do Rio Negro - Official Website
International Funders for Indigenous Peoples - Building a Philanthropic Ecosystem
https://internationalfunders.org